- Por Rony Torres
A Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que aumenta as penas para os crimes de furto, roubo, receptação de produtos roubados, latrocínio (roubo seguido de morte) e outros. A proposta será enviada ao Senado.
O texto aprovado é um substitutivo do deputado Alfredo Gaspar (União-AL) para o Projeto de Lei 3780/23, do deputado Kim Kataguiri (União-SP) e outros.
A pena geral de furto passa de reclusão de 1 a 4 anos para 2 a 6 anos, aumentando-se da metade se o crime é praticado durante a noite. Já o furto por meio de fraude com o uso de dispositivo eletrônico, os golpes virtuais, tem pena aumentada de reclusão de 4 a 8 anos para 4 a 10 anos.
O texto também aumenta as penas de reclusão para outros furtos específicos, como veículo transportado a outro estado ou para o exterior e gado e outros animais de produção.
Alfredo Gaspar cria ainda outros dois casos de furto com penas maiores: de animais domésticos e de dispositivo eletrônico que prejudique o funcionamento de serviços de telecomunicações, energia elétrica, abastecimento de água, saúde e transporte público.
O Atestado de Incompetência
Antes de mais nada, lembremos que a função primordial do sistema carcerário brasileiro é ressocializar o preso.
Na academia de direito, nas diversas cadeiras de direito penal, aprendemos e observamos que, na verdade, o sistema carcerário brasileiro funciona como um fator de “especialização” para o preso. Muitas vezes, o preso que entra no sistema por um crime menor acaba aprendendo ou sendo influenciado no cometimento de crimes mais graves pela permissão de convivência com outros presos.
Não se engane pensando que só o sistema carcerário é responsável pela reincidência. A sociedade como um todo é preconceituosa com o ex-detento, dificultando sua reinserção na vida cotidiana, muitas vezes o empurrando mais uma vez a cometer delitos para sobreviver.
A proposta de aumento da pena para crimes como furto e roubo atesta a incompetência das instituições públicas em ressocializar o indivíduo.
Ao invés de oferecer novas metodologias ou mesmo a ampliação de técnicas que possibilitem um recondicionamento dessa pessoa que cometeu um crime na sociedade, a proposta apresentada, ironicamente, é a de deixá-lo mais tempo preso em um sistema que não lhe ajuda.
Mais parece que as instituições estão corroendo e os restos dela são essas propostas com função unicamente midiática que afetam direta e indiretamente a vida de milhares de brasileiros.
O Aumento da Pena Reduz os Índices de Criminalidade?
Vou me abster de dar minha opinião como jurista e me limitarei a colacionar a opinião daqueles que já transcenderam intelectualmente no estudo do direito penal e das ciências sociais.
Luiz Flávio Gomes (doutor em direito penal) argumenta que o foco no aumento das penas não aborda as causas subjacentes do crime, como desigualdade, falta de oportunidades e falhas no sistema penitenciário. Gomes defende uma abordagem mais abrangente, que inclui a prevenção do crime, a ressocialização dos infratores e uma análise crítica das políticas de segurança pública.
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho é um crítico das políticas de encarceramento em massa e do aumento de penas no Brasil. O professor argumenta que o sistema prisional superlotado e as penas mais severas não atacam as causas do crime, mas sim perpetuam um ciclo de criminalidade. Coutinho enfatiza a necessidade de reformas estruturais no sistema de justiça criminal, como a promoção de alternativas ao encarceramento e a garantia de direitos fundamentais dos réus.
Michelle Alexander (autora do livro “The New Jim Crow,”) analisa o sistema de justiça criminal dos Estados Unidos, afirmando que o aumento de penas e a “guerra às drogas” nos EUA resultaram em um sistema de encarceramento em massa que perpetua a discriminação racial e não aborda as raízes sistêmicas da criminalidade. Alexander defende reformas que visam a desencarceramento, a equidade racial e a justiça restaurativa.
David Garland, um sociólogo britânico, criticou o enfoque em penas mais longas como uma estratégia eficaz na prevenção do crime. Ele argumenta que o aumento de penas não reduz necessariamente a criminalidade e pode levar à superpopulação carcerária sem abordar as causas sociais subjacentes. Garland promove a ideia de que uma abordagem mais holística, que inclua prevenção, reabilitação e justiça restaurativa, é mais eficaz na redução da criminalidade.
Assim, o que se percebe é que, quem realmente estuda o tema e preocupa-se com o desenvolvimento de um direito penal que realmente atenda a sociedade concluí que o aumento da pena, ou da severidade com que o Estado pune, como tentativa de evitar o cometimento de novos crimes, somente apazigua as almas dos mais alienados que entendem que a violência se combate com mais violência.
Uma Discussão Antiguíssima
Não é de hoje que governantes, administradores, reis ou déspotas tentam aumentar a severidade da punição como forma de incutir medo e, na teoria, diminuir os indicies de criminalidade.
Assim como também não é de hoje que estudiosos se debruçam sobre o tema, que é espinhoso, e criticam medidas autoritárias e impensadas, de legisladores, que afetam diretamente a sociedade. Prejudicando, sobretudo, aquela parcela mais carente da sociedade.
Beccaria, filósofo do Iluminismo italiano, é amplamente conhecido por seu trabalho “Dos Delitos e das Penas” (1764). Ele desenvolve o raciocínio contra a aplicação de punições cruéis e desumanas, defendendo que as penas deveriam ser proporcionais ao crime, evitando excessos de violência. Beccaria acreditava que a certeza e a celeridade da punição eram mais eficazes na prevenção do crime do que a severidade das penas. Ele também destacou a importância de um sistema de justiça transparente e imparcial.
Embora Sócrates não tenha deixado registros escritos de suas ideias, ele influenciou a filosofia moral e política na Grécia antiga. Sócrates questionava a ideia de que a punição severa seria eficaz na prevenção de crimes. Em seus diálogos, discípulos seus contam que ele explorou a importância da educação moral e do autoconhecimento como meios de melhorar o comportamento humano. Sócrates enfatizou a ideia de que a punição severa não abordava as raízes da criminalidade e que a verdadeira correção vinha do entendimento e da autorreflexão.
Aristóteles (384-322 a.C.), um dos filósofos mais influentes da antiguidade, discutiu a justiça e a punição em sua obra “Ética a Nicômaco.” O filosofo defendia que as penas deveriam ser proporcionais ao crime, evitando excessos e crueldade. Aristóteles acreditava que a punição severa poderia levar à revolta e à perpetuação do ciclo de violência. Ele também enfatizou a importância da educação e da formação de hábitos virtuosos como meios mais eficazes de prevenir o crime.
Platão (427-347 a.C.), em sua obra “A República”, defendia que as penas devem ser proporcionais ao crime cometido, e não devem ser excessivas. Ele acreditava que penas muito severas não são eficazes na prevenção do crime, pois podem levar à revolta e à violência.
Apesar de todas essas referências e criminalistas extremamente competentes que temos no Brasil, os deputados entenderam que o caminho é o de aumentar as penas para crimes que majoritariamente quem comete são pessoas carentes (econômica e intelectualmente).
O Estado Brasileiro está falindo moralmente…
Analogia pragmática 1
Aumento de penas para crimes de furto na Argentina
Um caso análogo que ocorreu na Argentina com elevação das penas para crimes de furto, anunciado em 2021 pelo presidente Alberto Fernández. A medida foi tomada após o aumento da criminalidade no país durante a pandemia de Covid-19.
De acordo com informações do jornal Clarín, o governo argentino propôs um projeto de lei que aumenta as penas para os crimes de furto, roubo e receptação. O texto prevê, por exemplo, que o furto de bicicletas seja considerado um crime grave, com pena de até 10 anos de prisão.
Além disso, o projeto de lei também prevê a criação de um registro nacional de receptadores de produtos roubados, com o objetivo de combater o mercado ilegal de produtos roubados. O registro será gerenciado pelo Ministério da Segurança e estará disponível para consulta pelas autoridades policiais.
– Clarín – “El Gobierno enviará al Congreso un proyecto para endurecer las penas por delitos de robo y hurto”
Analogia pragmática 2
A Reforma nas Leis de Sentenças Mínimas Obrigatórias nos Estados Unidos
Nos Estados Unidos, uma reforma semelhante nas leis de sentenças mínimas obrigatórias ocorreu ao longo dos anos. As leis de sentenças mínimas obrigatórias determinavam penas obrigatórias para crimes específicos, limitando a flexibilidade dos juízes na determinação das sentenças.
Com o objetivo de reduzir o superencarceramento e promover uma abordagem mais justa ao sistema de justiça criminal, muitos estados dos EUA adotaram reformas que alteraram as leis de sentenças mínimas obrigatórias. Isso permitiu aos juízes maior discricionariedade na determinação das penas, considerando fatores individuais e circunstâncias.
– Brennan Center for Justice – “Mandatory Minimum Sentences: A National Reform Agenda”