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STF analisa constitucionalidade de dispositivos da convenção de Haia sobre sequestro internacional de crianças

O principal ponto de debate é se a obrigação de devolver a criança ao país de residência habitual deve prevalecer, mesmo quando houver indícios de risco físico ou psicológico.

Foto: Reprodução.

O Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou nesta quarta-feira (28/05) o julgamento de duas ações que questionam trechos da Convenção da Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças. As discussões giram em torno da aplicabilidade da regra de retorno imediato dos menores ao país de origem, especialmente em casos que envolvem suspeitas de violência doméstica.

O principal ponto de debate é se a obrigação de devolver a criança ao país de residência habitual deve prevalecer, mesmo quando houver indícios de risco físico ou psicológico.

O tema ganhou ainda mais repercussão após uma recente decisão da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que determinou o retorno ao Brasil de duas meninas levadas à Irlanda. A mãe, brasileira, havia deixado o país europeu alegando suspeitas de abuso praticado pelo pai das crianças.

As ações em julgamento

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7.686, o PSOL questiona a exigência do retorno imediato da criança quando há suspeitas consistentes de violência doméstica. O partido defende que, nesses casos, a permanência da criança no Brasil deve ser considerada uma medida legítima, sob pena de violação aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da proteção integral da criança e do adolescente.

Por sua vez, na ADI 4.245, o partido Democratas (DEM) questiona a ratificação da Convenção da Haia, feita por meio do Decreto Legislativo 79/1999 e do Decreto Presidencial 3.413/2000. O DEM argumenta que vários dispositivos da norma internacional estariam em desacordo com a Constituição Federal, justamente por não permitirem uma análise mais criteriosa das circunstâncias de cada caso. A legenda também pede a suspensão imediata de trechos da Convenção, além da paralisação de processos que tenham como base esses dispositivos.

O caso Raquel Cantarelli

O julgamento no STF ocorre na esteira de um caso que ganhou ampla repercussão. Raquel Cantarelli, brasileira, deixou a Irlanda em 2019, trazendo consigo suas duas filhas. Ela alegava que o ex-marido havia cometido abuso sexual contra uma das crianças. Embora a Justiça irlandesa tenha arquivado o processo, Raquel relatou que foi vítima de restrições de liberdade enquanto permaneceu no país.

Com o apoio da Polícia Federal e da Embaixada do Brasil, ela conseguiu retornar ao território brasileiro. No entanto, o pai das crianças acionou a Justiça brasileira, com respaldo da Advocacia-Geral da União (AGU), alegando se tratar de subtração internacional ilícita, com base na Convenção de Haia.

Em primeira instância, a Justiça brasileira reconheceu a exceção prevista no artigo 13, alínea “b”, da Convenção — que permite negar o retorno em casos de risco grave à integridade física ou psicológica da criança — e negou o pedido do pai. A decisão, no entanto, foi revertida pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2), que ordenou o retorno das meninas à Irlanda. A medida foi cumprida em junho de 2023, e desde então, a mãe não tem mais contato com as filhas.

O caso chegou ao STJ por meio de recursos interpostos pelo Ministério Público Federal (MPF) e pela Defensoria Pública da União (DPU). Em dezembro de 2024, a Primeira Turma do STJ reverteu a decisão do TRF2, restabelecendo a sentença de primeira instância. O relator, ministro Gurgel de Faria, fundamentou sua decisão em laudos psicológicos, sociais e em medidas protetivas que evidenciavam riscos concretos na convivência das crianças com o pai.

O ministro ressaltou que o objetivo da decisão não era punir o genitor, mas sim assegurar o melhor interesse das crianças. Também criticou a falta de providências para garantir, ao menos, o contato entre mãe e filhas durante o cumprimento da ordem de retorno.

Na semana passada, ao analisar embargos de declaração apresentados pela AGU, o STJ manteve o mérito da decisão, mas esclareceu quais instrumentos jurídicos podem ser utilizados pela União para garantir o cumprimento da ordem, como a cooperação internacional e medidas de proteção diplomática.