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A SEGURANÇA JURÍDICA EM FACE DO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE DOCUMENTOS INTERNACIONAIS

O trabalho analisa a insegurança jurídica gerada pela ausência de controle de convencionalidade do Estatuto de Roma, promovida pela inclusão do §4º no art. 5º da Constituição Federal. O Brasil se submete à jurisdição do Tribunal Penal Internacional nos termos do estatuto, mas não há legislação que discipline a relativização de princípios constitucionais ou normas domésticas consolidadas. A inércia legislativa pode levar a antinomias e consequências indesejadas. A lei ordinária em tramitação no Congresso não resolve as questões internas, focando apenas na incompatibilidade internacional. É necessário discutir o assunto em níveis mais elevados e com a participação da sociedade

RONY DE ABREU TORRES

A SEGURANÇA JURÍDICA EM FACE DO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE DO ESTATUTO DE ROMA

Este artigo científico foi desenvolvido como pré-requisito para conclusão do curso de pós-graduação e obtenção do título de especialista em Direito Internacional público e privado por Rony de Abreu Torres pelo Centro Universitário Uniamérica.

TERESINA, PI

2021

LISTA DE ABREVIATURAS

ADIAção Direta de Inconstitucionalidade
CFConstituição Federal
ONUOrganização das Nações Unidas
PLProjeto de Lei
RC RESResolução por consenso Resolução
RERecurso Extraordinário
RRRecurso de Revista
STFSupremo Tribunal Federal
TPITribunal Penal Internacional

RESUMO

O trabalho se propõe a analisar a possível insegurança jurídica gerada pela ausência de controle de convencionalidade do Estatuto de Roma promovida pela inclusão do §4º no art. 5º da Constituição Federal informando que o Brasil se submete à jurisdição do Tribunal Penal Internacional nos termos do que dispõe o referido estatuto. Assim faz-se necessária a discussão do tema uma vez que inexiste legislação que discipline a relativização de princípios constitucionais ou normas domésticas já consolidadas no ordenamento jurídico brasileiro. Analisando de forma detida as principais antinomias, ainda que aparentes, de forma a permitir uma exemplificação técnica das possíveis consequências advindas da inércia legislativa. Logo, observa-se que não é suficiente a lei ordinária que tramita no Congresso visto que se debruça a resolver as questões somente no nível de incompatibilidade internacional, sem observar as querelas internas que subsistirão através de modificações irregulares da base principiológica constitucional e de cláusulas pétreas, sendo necessário, portanto, a discussão em níveis mais elevados e com a participação da sociedade.

Palavras-chave: Tribunal Penal Internacional; Estatuto de Roma; Controle de Convencionalidade; Princípios Constitucionais; Segurança Jurídica

ABSTRACT

The work proposes to analyze the possible juridical insecurity generated by the lack of conventionality control of the Rome Statute promoted by the inclusion of §4 in art. 5 of the Federal Constitution, stating that Brazil submits to the jurisdiction of the International Criminal Court under the terms of the aforementioned statute. Thus, it is necessary to discuss the subject since there is no legislation that regulate the relativization of constitutional principles or domestic norms already consolidated in the Brazilian legal system. Analyzing in detail the main antinomies, even if they are apparent, in order to allow a technical exemplification of the possible consequences arising from legislative inertia. Therefore, it is observed that the ordinary law that is being processed in Congress is not enough, since it focuses on resolving the issues only at the level of international incompatibility, without observing the internal quarrel that will subsist through irregular modifications of the constitutional principle base and stony clauses, therefore, the discussion at higher levels and with the participation of society is necessary.

Key-words: International Criminal Court; Rome Statute; Conventionality Control; Constitutional principles; Legal Security

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.. 7

I – O ESTATUTO DE ROMA E SUA INSERÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO  

I.I – A inserção de documentos internacionais na legislação doméstica segundo a Constituição de 88 

I.II – O teor político na inserção de tradados internacionais.

II – POSSÍVEL INCOMPATIBILIDADE DO ESTATUTO DE ROMA E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 88.

II.I – Da pena de caráter não humanitário.

II.II – Da extradição e da entrega.

II.III – Do instituto da prescrição.

III – AUSÊNCIA DO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE E A SEGURANÇA JURÍDICA  

IV – CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Referências.

INTRODUÇÃO

Os diversos controles de aplicação, vigência e validade de leis previstos no ordenamento jurídico brasileiro possuem um grau de complexidade técnica e abundância de variabilidade e competência de exercício que não permitem uma análise mais aprofundada de forma a utilizar o método comparativo com controle de convencionalidade, foco deste artigo. Mas, a partir deste último se pode traçar paralelos, principalmente com os controles difuso e concentrado de constitucionalidade para que se analise de forma mais detida os tratados internacionais, em especial o Estatuto de Roma e como este lida diretamente com os conflitos de aplicação em face da legislação doméstica.

Nos controles de constitucionalidade se faz uma análise “de baixo para cima” (se utilizarmos a pirâmide de Kelsen como padrão) no qual verifica se as leis ordinárias estão em obediência com o que rege a Carta Magna de 88. Enquanto para o Controle de Convencionalidade a análise é feita de “cima para baixo” (aqui adotando a teoria da superioridade do Direito Internacional) em que se observa se as normas internas são compatíveis com o documento internacional que visa adentrar à legislação pátria.

Neste ponto é necessário inferir que, é rotineiro no Brasil a assinatura de documentos internacionais sem que estes adentrem, propriamente, na legislação interna. Isto porque a validade do documento precisa de confirmação do Poder Legislativo em quóruns específicos para de fato fazer parte do ordenamento doméstico como lei ordinária. De outra ótica a assinatura de compromissos internacionais fica a cargo do Poder Executivo, na pessoa do presidente da república, obviamente observando o sistema de Checks and balances em que por vezes um pode exercer a função do outro quando o poder não é exclusivo.

Como exemplo pode-se citar o caso da Convenção Interamericana Contra o Racismo, em que foi assinada em 2013 durante a reunião da Organização dos Estados Americanos (OEA), na Guatemala, mas somente ratificado em 2021 pelo presidente Jair Bolsonaro através do decreto legislativo 1/21. Outra informação importante, tendo em vista a hierarquia das normas, já citada, foi o quórum de aprovação dessa convenção que foi votada em dois turnos, nas duas casas do legislativo, por 3/5 dos membros, lhe garantindo assim status de emenda constitucional – Lembrando que somente tratados que versem sobre direitos humanos possuem a prerrogativa de serem votados para adquirirem tal hierarquia normativa.

Assim podemos constatar que, existem tratados de Direitos Humanos que são aplicados pelo Poder Judiciário ainda que sem a devida inserção no ordenamento doméstico pelos outros dois Poderes, existem tratados que são aplicados como normas internas somente com a assinatura do Poder Executivo, e existem tratados que sequer foram discutidos pelo Congresso Nacional e mesmo assim implicam em obrigações do Estado brasileiro para com a comunidade internacional, como é o caso do Estatuto de Roma.

Aqui faz-se necessária uma breve explanação sobre as diversas teorias de Direito Internacional que discutem a hierarquia do tratado internacional frente à legislação doméstica, ao passo que ao se utilizar do termo “devida inserção no ordenamento jurídico vigente”, não se está aqui adotando uma teoria ou outra, apenas constatando que aquele determinado documento jurídico internacional ainda não passou pelo procedimento de internalização normativa feita pelo Congresso Nacional ou pelo Executivo.

Esse tipo de análise geralmente desemboca na teoria geral de hierarquia das normas, tendo em vista a paca jurisprudência e legislação existente sobre o tema. Sendo assim, o que se propõe aqui é analisar este controle de convencionalidade quando da ótica do Direito Internacional se apresenta como um avanço jurídico e cooperativo, enquanto dá ótica do Direito Constitucional Interno pode se mostrar como um retrocesso e/ou seção desnecessária ou ilegal de soberania para cumprimento de legislação alienígena.

I – O ESTATUTO DE ROMA E SUA INSERÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Em breve introdução sobre o que é o Tribunal Penal Internacional (TPI) podemos traçar alguns pontos importantes para análise que se segue. Esse tribunal apresenta-se como uma das instituições mais avançadas do Direito Penal Internacional, vez que, diferentemente dos demais tribunais internacionais o TPI cuida em julgar condutas criminosas de indivíduos, e não de Estados, tocando somente a seara dos Direitos Humanos.

Sendo assim, pode-se afirmar que, por se tratar de uma corte internacional que pretende aplicar sanções contra pessoas, se torna necessário que o Estado que assina seu estatuto ceda parte de sua soberania para permitir que um organismo internacional aplique medida que, em tese, somente o Poder Judiciário interno daquele país poderia aplicar.

            Neste ponto temos que colocar em análise duas informações importantes, que são:

  • I – O Brasil não obteve o quórum mínimo para o status de emenda constitucional (na forma do art. 5º, §3º da CF/88) para o Estatuto de Roma que regula o TPI;
  • II – O Brasil inseriu no ordenamento jurídico vigente, com status de emenda constitucional, norma que afirma a submissão ao Tribunal (CF, art. 5º, § 4º).

Logo, observa-se uma anomalia jurídica que deixa a interpretação das normas previstas no Estatuto de Roma ao bel prazer daquele julgará ou fará o controle de convencionalidade do caso em tela. Senão vejamos o que diz a Constituição Federal sobre o retromencionado dispositivo:

CF, art. 5º, § 4º: O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão. (grifos nossos)

Tendo em vista a clara manifestação constitucional de submissão e adesão ao que dispõe o Estatuto de Roma, entende-se que, em tese, este Estatuto não precisaria da aprovação prevista no §3º do mesmo art. 5º, CF/88 para que tivesse status de emenda constitucional, assim como foi necessário para a Convenção Interamericana Contra o Racismo que precisou passar pelo quórum específico para ganhar tal grau hierárquico. Assim, o Estatuto de Roma “pularia” uma etapa de análise pelo Congresso e já vigoraria em grau de emenda constitucional, e com esse “atalho” são acompanhados todos os imbróglios jurídicos de compatibilidade que se fará análise.

Logo, do ponto de vista internacional, o Brasil já inseriu no ordenamento interno (em nível constitucional) o Estatuto de Roma (quesito para ratificação do Estatuto) tendo dever de cumprimento no caso de requisição da Corte de Haia. Enquanto do ponto de vista doméstico, apesar de já constar como emenda constitucional, o Estado brasileiro não resolveu diversas incompatibilidades que ficam somente teorização doutrinária como é o caso da entrega de nacional, prisão perpetua, prescrição, cumprimento de sentença etc. Observe-se aqui que, não se está a afirmar que são quesitos de resolução impossível; pelo contrário, muitos deles são de fácil adequação. Contudo, no Brasil impera o princípio da legalidade e da segurança jurídica, e enquanto não existir, no ordenamento interno, orientação que determine qual instituto prevalecerá, o caos estará instalado e a resolução, como dito, dependerá da interpretação de muitos com as mais diversas teorias possíveis.

 

I.I – Da inserção de documentos internacionais na legislação doméstica segundo a Constituição de 88

O Brasil sempre esteve envolto nos mais avançados temas internacionais.  Seja na criação de organizações internacionais como é o caso da própria Organização das Nações Unidas (ONU) ou na criação de documentos que resguardam os Direitos Humanos como é o caso do TPI. Em contrapartida, as normas que regulam o Direito Internacional Público e Privado são extremamente opacas, muitas vezes ficando a cargo do próprio documento internacional explicitar como a norma externa deve ser aplicada na seara interna.

A maior parte das discussões de aplicação, inserção e hierarquia das normas internacionais sequer é possível de analisar no âmbito da interpretação legislativa, ficando somente no espaço jurisprudencial e, mesmo assim, pouca coisa se tem de relevante para tomar como base algo que não sejam a escassas decisões do STF sobre o tema. Assim sendo, o ativismo externo do Brasil na assinatura de compromissos e convenções internacionais não acompanha sua internalização, existindo muitos documentos que transcorrem décadas (vide a convenção sobre o racismo já citada) desde sua assinatura (gerando obrigação internacional) até sua internalização através de procedimentos do Congresso e do Poder executivo.

Neste momento podemos afirmar que, a doutrina majoritária entende pela aplicação da Pirâmide de Kelsen quanto a hierarquização das normas brasileiras, estando a Constituição Federal no topo, seguida das demais normas infraconstitucionais e legais que serão divididas por temas e processo de aprovação.

Logo, prestigiando o princípio da especificidade, nos deteremos ao nosso objeto que é um tratado internacional de Direitos Humanos e neste caso, a Emenda Constitucional 45/2004 inseriu o §3º no art. 5º, informando que:

CF, art. 5º – § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (Atos aprovados na forma deste parágrafo)

E é neste diapasão que se pode analisar o pensamento do professor Muzzuoli sobre o tema:

É sabido que a Emenda Constitucional nº 45/04, que acrescentou o §3º ao art. 5º da Constituição, trouxe a possibilidade de os tratados internacionais de direitos humanos serem aprovados com um quórum qualificado. A medida que os tratados de direitos humanos ou são materialmente constitucionais (art. 5º, §2º) ou material e formalmente constitucionais (Art. 5º, §3º), é licito entender que para além do clássico “controle de constitucionalidade”, deve ainda existir (doravante) um “controle de convencionalidade” das leis, que é a compatibilização da produção normativa doméstica com os tratados de direitos humanos ratificados pelo governo e em vigor no país. (Muzzuoli, pg.114)

Assim sendo, no ordenamento jurídico brasileiro, os tratados internacionais, de maneira geral, ganham status infraconstitucional ou supralegal, ou seja: um grau abaixo da Constituição e suas emendas, podendo existir a excepcionalidade dos tratados que versem sobre a proteção dos Direitos Humanos ganharem hierarquia de Emenda Constitucional no caso de serem aprovados por um quórum específico.

Contudo, até aqui, ainda estamos no campo da teorização e interpretação doutrinária, não havendo qualquer tipo de caráter legal para o que se dispõe a discutir sobre a hierarquia normativa dos tratados internacionais, vez que, o próprio professor Muzzuoli, apesar de doutrina minoritária, entende que mesmo os tratados de direitos humanos aprovados pelo quórum previsto no §3º do art. 5º deveriam ser tratados apenas como supralegais.

Independentemente da posição que se adote quanto a hierarquia do Estatuto de Roma no ordenamento jurídico brasileiro: se ele tem status infraconstitucional por não ter sido aprovado pelo quórum mínimo previsto no §3º ou se tem status de emenda constitucional por estar explicita a submissão ao TPI no §4º, é certo que a adequação da legislação vigente é de extrema necessidade para que não exista uma anomalia e descompasso da normativa internacional, vez que o Brasil não poderá alegar incompatibilidade interna em possível tese de descumprimento no caso de requisição do Tribunal Penal Internacional.

 

I.II – Do teor político na inserção de tradados internacionais no ordenamento jurídico vigente

Nenhum Estado assina documentos internacionais que vão contra o seu interesse. Os trados geralmente são firmados visando o bem da coletividade, mas sobretudo visando os benefícios internos individuais de cada parte aderente ao documento. Logo, pela redação de competência da constituição Federal de 88, podemos inferir o teor político na avaliação desses compromissos, onde a competência para assinar é do Chefe do executivo Federal (CF/88, art. 84, VII e VIII) e a aprovação fica incumbida ao Congresso Nacional (CF/88, art. 49, I).

Esse raciocínio de que os tratados internacionais são inseridos no ordenamento jurídico por políticos de profissão que, no melhor dos casos, visam o interesse coletivo, ajudam a explicar o porquê da ignorância da correta adaptabilidade do documento antes de sua assinatura ou ratificação. Entende-se que muitos desses compromissos são firmados no intuito de inserir o Brasil, politicamente, nos mais diversos ciclos e comunidades internacionais. Por anos o Brasil foi referência na condução, elaboração e aprovação de documentos internacionais com pautas ambientais e humanitárias, apesar da realidade interna ser outra.

 A falta de zelo com a compatibilidade legislativa interna pode ser justificada pelo dinamismo com que as Relações Internacionais vão se dando. Mas essa “justificativa” não sana o fato de que existe uma anomalia/antinomia. E a demora nessa adaptabilidade da legislação, e correta inserção do documento internacional, pode acabar gerando prejuízo internacional muito maior, uma vez que internamente o judiciário pode aplicar a legislação vigente em descumprimento ao que dispõe o Estatuto de Roma, mas externamente tal justificativa seria inócua, colocando assim o Estado Brasileiro em situação de extrema fragilidade e de baixa confiabilidade, podendo inclusive ser alvo de sanções internacionais.

O fator político, nunca pode ser retirado da equação que analisa a correta inserção de determinado documento na legislação interna um vez que, desde sua origem, as Relações Internacionais tem significante relevância e a análise puramente teórica ou tecno-legislativa não abrangeria todas as lacunas necessárias para entender a anomalia que se criou com a assinatura sem inserção.

Deve-se entender que, a jurisprudência já entende válida a aplicação por magistrados de tratados internacionais que foram meramente assinados pelo poder executivo, e ainda no aguardo na ratificação pelo Legislativo. E que nesses casos o Congresso funciona como uma instância revisora da compatibilidade daquele documento com a legislação interna. E enquanto o tratado não for discutido pelo Congresso o poder de interpretação e aplicação fica com o Judiciário.

E é nessa incumbência dada ao judiciário que se constata uma enorme inversão das responsabilidades dos Poderes, uma vez que, desde a assinatura, como vimos, os responsáveis e principais atores na inserção de documentos internacionais na legislação interna são os Poderes Legislativo e Executivo, mas que por sua inação e/ou falta de zelo, a aplicação acaba ficando adstrita ao Poder Judiciário, através de jurisprudência, que no caso do conflito aparente das normas, será este o Poder que interpretará qual a melhor aplicação.

Pode-se ir além, ao observarmos que no Brasil tem-se o princípio do livre convencimento motivado do magistrado, em que ele pode aplicar qualquer norma vigente (e como se viu, a mera assinatura do tratado já o caracteriza como norma vigente) podendo haver casos em que o tratado informa a aplicação “A”, a Constituição informa a aplicação “B” e uma eventual lei infraconstitucional informa a aplicação “C” – Todas vigentes, mas com forma diversa em seu conteúdo. Assim sendo, no exemplo anterior, enquanto o Congresso não discutir o referido tratado, caberá ao Poder Judiciário decidir oque aplicar no caso concreto, ainda que contra o texto do tratado, podendo, inclusive, ignorar o motivo político que levou a assinatura daquele tratado, prestigiando somente a legislação interna e colocando o Brasil em situação delicada perante a comunidade internacional que participou da assinatura daquele documento.

II – POSSÍVEL INCOMPATIBILIDADE DO ESTATUTO DE ROMA E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 88

Como se observou, a análise de compatibilidade de um tratado com a legislação interna deve levar em conta uma serie de fatores, dos quais os três poderes estão, cada uma, na forma da lei, imbuídos de uma parte. Sendo o presidente da república, em regra, aquele responsável pela celebração de tratados internacionais, o Congresso pela validação e discussão do referido tratado, e o judiciário, somente no caso de uma provocação, para fazer a  análise de compatibilidade.

Logo, podemos extrair da Constituição Federal que é competência do STF a declaração de inconstitucionalidade de tratados ou lei federais, senão vejamos:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:

b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; (grifos nossos).

Utilizando-se aqui do método interpretativo, podemos deduzir que o constituinte colocou os tratados internacionais no mesmo grau de equivalência das leis federais, incluindo no bojo da Suprema Corte a prerrogativa de análise de incompatibilidade e assim como o controle de constitucionalidade, estariam os documentos internacionais igualmente submetidos ao controle de convencionalidade a ser promovido pelo STF. Foi esse o posicionamento jurisprudencial extraído do HC 72.131-1 RJ onde o Ministro Celso de Mello confirma que tratados internacionais ratificados possuem status de lei ordinária. Em 2006 o STF entendeu de forma análoga à jurisprudência anterior no RE 466.343-SP.

Logo, como já mencionado, a baliza que temos para a análise técnica de hierarquia normativa, pautar-se-á em muitos casos pela jurisprudência do Supremo. Assim, adotemos o entendimento de que apesar de o Estatuto de Roma não possuir a aprovação em quórum que lhe dê o status de emenda constitucional, o §4º da constituição em seu artigo 5º (portanto cláusula pétrea) implica em obediência ao Estatuto de Roma garantido em dispositivo próprio no corpo da Constituição. Portanto, o argumento aqui não é o de se eventual documento alienígena teria validade no ordenamento jurídico brasileiro, mas o de que está no próprio corpo constitucional a ordem de obediência ao documento externo.

Assim, superado o argumento de dever de obediência, pois este já existe em dois níveis diferentes, como já visto, passa-se à análise da compatibilidade.

Para essa análise será necessário focar somente naqueles conflitos mais aparentes e que poderiam levar a uma querela internacional quando do seu cumprimento ou não. Em respeito às mais diversas posições doutrinárias que se levantam para opinar sobre o conteúdo, tentar-se-á aqui traçar paralelos do problema proposto, para ao final encontrar um possível desenlace para o entrave jurídico. Não se pretendendo esgotar todos os problemas de compatibilidade que este tratado apresenta, mas somente avaliar de maneira geral na tentativa de exemplificar o risco que o Estado brasileiro corre em um eventual descumprimento do Estatuto de Roma sob o argumento de incompatibilidade constitucional ou principiológica.

 

II.I – Da pena de caráter não humanitário

Para além de uma análise superficial é sabido que as penas de caráter não humanitário no Brasil somente serão admitidas em situações de guerra e em contexto extremamente taxativo. A Incompatibilidade aqui se analisa na seara principiológica, na qual se fundamentou todo o escopo constitucional da Carta Magna de 1988, conhecida como “Constituição Cidadã”, pelo seu zelo e garantias de preservação dos Direitos Humanos.

Superando aqui, também, qualquer outra discussão sobre a conceituação de penas de caráter não humanitário, podemos firmar que a de caráter perpétuo é previstas pelo Estatuto de Roma e proibida expressamente pela Constituição de 88. Logo, existem as mais diversas saídas para validação ou não de penalidades de caráter perpétuo quando aplicadas pelo TPI. Dentre os defensores, é comum o argumento da superioridade do direito internacional e do princípio da complementariedade e solidariedade, em que o Brasil cederia soberania e jurisdição na aplicação de pena diversa ao seu ordenamento jurídico em prol da comunidade internacional. De outro lado, sustenta-se a base principiológica de defesa dos Direitos Humanos incutido no próprio texto constitucional, bem como a assinatura de diversos outros tratados que rechaçam penas desumanas, igualmente assinados e ratificados pelo Brasil.

Alguns apontam essa incompatibilidade como uma possível antinomia jurídica, em que colocam em lados opostos a Constituição Federal e o TPI, sendo aqui a principal fonte de divergências a possibilidade ou não de relativização de cláusulas pétreas. Senão vejamos o pensamento do Professor Cezar Roberto Bittencourt sobre o tema:

Na verdade, o Direito penal não pode – a nenhum título e sob nenhum pretexto – abrir mão das conquistas históricas consubstanciadas nas garantias fundamentais referidas ao longo desse trabalho. Efetivamente, um Estado que se quer democrático de Direito é incompatível com um Direito Penal funcional, que ignore as garantias fundamentais do cidadão (BITTENCOURT, pg. 46)

Logo, refletindo nos pensamentos do professor Cezar Roberto, entende-se que na aplicação do direito penal, as conquistas e avanços legislativos no que tange aos Direitos Humanos, não poderiam ser suprimidas, ainda que em benefício coletivo, sob pena de um retrocesso principiológico. Em contrapartida, não se pode deixar de observar que o Tribunal Penal Internacional se apresenta, e de fato o é, com um dos maiores avanços institucionais na proteção dos Direitos Humanos de nossos tempos, em que seu conteúdo normativo, para além do Direito Internacional, se mostra como uma das ferramentas mais eficientes na coibição de práticas anti-humanitárias.

Contudo, se confrontado a base principiológica que dispõe a Carta Magna de 88 e o Estatuto de Roma, observaremos que aquela aborda penas violadoras de Direitos humanos como caso excepcional, em situações especificas, como verificou-se no caso da pena de morte em situação de guerra, enquanto o Estatuto prevê a prisão perpétua não como clara medida de exceção, mas a coloca como uma possibilidade subjetiva ao julgador, dependendo do “elevado grau de ilicitude do fato” – e aqui se observa a mencionada subjetividade na aplicação ou não da pena de caráter perpétuo. Senão vejamos o texto do Estatuto:

Artigo 77

Penas Aplicáveis

        1. Sem prejuízo do disposto no artigo 110, o Tribunal pode impor à pessoa condenada por um dos crimes previstos no artigo 5o do presente Estatuto uma das seguintes penas:

        a) Pena de prisão por um número determinado de anos, até ao limite máximo de 30 anos; ou

        b) Pena de prisão perpétua, se o elevado grau de ilicitude do fato e as condições pessoais do condenado o justificarem

Historicamente e constitucionalmente o Brasil se posiciona contra penas de caráter perpetuo podendo-se observar esses dispositivos nas constituições de 1934 (art. 113, XXIV), na de 1937 (art. 122, XIII), na de 1946 (Art. 141), na de 1967 (art. 150, §11), na emenda constitucional feita em 1969 (art. 153, §11) e na vigente Constituição Federal de 1988 que no seu art. 5º, XLVII, B informa que é proibido a aplicação de pena de caráter perpétuo.

Assim, tendo em vista o procedimento de julgamento do TPI, no caso de uma eventual requisição de nacional ou não, em que se teria como certa ou possível a aplicação da pena de caráter perpétuo, o Brasil se veria em uma situação de clara inconstitucionalidade na hipótese de cumprir ou não tal determinação. Em que se enviasse o condenado para Haia, para cumprir prisão perpétua, estaria em clara violação de cláusula pétrea e de outros tratados internacionais de proteção dos Direitos Humanos que proíbem a aplicação dessa pena, enquanto se não enviasse, também estaria em violação do Estatuto de Roma, e igualmente de cláusula pétrea, já que a submissão à jurisdição do TPI está prevista no art. 5º da Constituição Federal de 88.

A única possibilidade viável, para o caso, seria a existência de legislação vigente na época da requisição, disciplinando especificamente a antinomia jurídica. Logo, é necessário que exista dispositivo próprio que preveja não somente a seção de soberania ao Tribunal Penal Internacional, mas a relativização como medida de exceção para o cumprimento das determinações penais previstas no Estatuto de Roma. Não é plausível que num caso de requisição de pessoa sob o poder da autoridade brasileira para cumprimento de pena diversa ao ordenamento doméstico, o judiciário tenha que decidir o caso somente com base na jurisprudência ou no livre convencimento motivado aplicando tratados diversos que não guardam relação direta com o Estatuto de Roma. Sendo assim, a única medida que garantiria a segurança jurídica, seria a criação e validação constitucional de dispositivo que discipline a clara incompatibilidade entre o documento internacional e a norma constitucional prevendo a possibilidade da aplicação de tais penas como medidas de exceção em cumprimento de requisição do Tribunal de Haia.

 

II.II – Da extradição e da entrega

Em conceituação rápida para diferenciação dos dois institutos, podemos afirmar que extradição é o ato de transferir a responsabilidade sob pessoa em custódia de um Estado “A” para um Estado “B”, enquanto o instituto da Entrega seria o ato de transferir pessoa sob custódia de um Estado “A” para uma Organização Internacional.

Na diferenciação conceituada acima, parte da doutrina entende estar sanada a problemática da proibição de extradição de brasileiro nato prevista na Constituição de 88, visto que o Brasil estaria “entregando” seu nacional para uma Organização Internacional, que em tese não possui intenções particulares como é o caso de um Estado, que por sua vez requisita a extradição, logo não existindo qualquer incompatibilidade. Contudo, entende-se aqui que a análise é bem mais complexa do que a simples nomenclatura dos institutos.

Como disposto nos itens anteriores, observou-se que o Direito Internacional é construído através de decisões políticas nas Relações Internacionais, não tratando-se unicamente de uma ciência técnica e objetiva. Quando se analisa o instituto da entrega, tem-se não somente uma mera requisição para submissão à Corte Internacional, mas sim o verdadeiro cerne de fundamento da existência do TPI, sem o qual ousa-se dizer que ele sequer existiria, pois seria iníquo proferir sentenças das quais o tribunal ficaria à mercê do Estado para cumprimento ou não.

Daí advém a necessidade de cooperação e inserção do Estatuto de Roma, à legislação interna, como requisito indispensável para que o Estado faça parte do Tribunal Penal Internacional. Logo, ao ratificar e inserir o Estatuto de Roma na Constituição Federal de 88, o Brasil se comprometeu na entrega, inclusive de nacional, no caso de requisição por parte do TPI. Contudo, nunca preocupou-se em adaptar a legislação interna para tanto, existindo, inclusive, doutrinadores que afirmam que somente um novo poder constituinte seria capaz de fazer tal adaptação:

[…]Logo, de acordo com os argumentos adotados sob a concepção estrutural, ou a inconstitucionalidade que é proveniente da previsão de extradição de nacionais, ou a inconstitucionalidade que é proveniente da previsão de pena de prisão perpétua. Mesmo existindo uma legislação prevendo e regulamentando o instituto da entrega, todavia, não existe como reformar cláusula pétrea que proíbe a pena de prisão perpétua. Mesmo a interpretação do Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade dos tratados de direitos humanos, aplicada ao Estatuto de Roma, não soluciona o conflito entre as normas, haja vista que o art. 5º da Constituição de 88 é resultado do exercício do poder constituinte derivado e as cláusulas pétreas só podem ter seu conteúdo modificado pelo poder constituinte originário (MIRANDA, pg. 114)

            O próprio estatuto assevera a necessidade de implementação do instituto da Entrega como forma de evitar eventual incompatibilidade constitucional com eventual requisição do TPI.

Artigo 91

[…]

        c) Os documentos, declarações e informações necessários para satisfazer os requisitos do processo de entrega pelo Estado requerido; contudo, tais requisitos não deverão ser mais rigorosos dos que os que devem ser observados em caso de um pedido de extradição em conformidade com tratados ou convênios celebrados entre o Estado requerido e outros Estados, devendo, se possível, ser menos rigorosos face à natureza específica de que se reveste o Tribunal.

Aqui se verifica igual dificuldade na possibilidade de sanar a antinomia da entrega. Ainda que alguns sustentem que sequer precisa de legislação diversa disciplinando o tema, vez que a própria Constituição reza obediência ao Estatuto já ratificado, argumentamos, aqui, por uma linha de raciocínio diferente que entende pela total incompatibilidade do instituto da entrega, e que mesmo após o advento de uma eventual legislação regulamentando a antinomia ainda deveria ser enfrentado a questão da modificação de clausula pétrea gerada por essa nova legislação.

Sendo assim, a única saída possível, seria a inserção de emenda constitucional prevendo como medida de exceção a conceção da Entrega, assim como existe a possibilidade da aplicação da pena de prisão perpétua: Observando-se assim a principal diferença: a Constituição já nasceu com a exceção ao caso de prisão perpétua, o Estatuto de Roma implementaria uma nova exceção que suprimiria cláusula pétrea já vigente. De uma forma ou de outra, entende-se que a única forma viável seria a discussão através do implemento de uma nova legislação.

Atualmente existe o PL 4038/2008 que visa discutir diversas questões de incompatibilidade do Estatuto de Roma, mas como ainda não surgiu nenhum imbróglio que justificasse qualquer aceleração na sua tramitação, o projeto já caminha para uma década e meia sem qualquer avanço significativo.

II.III – Do instituto da prescrição

A prescrição, aqui analisada, estará disposta tanto no Código Penal Brasileiro quanto a Constituição Federal, em que esta última apontará os crimes de racismo e de grupos armados como imprescritíveis (art. 5º, XLII e XLIV), enquanto o Código Penal disciplina no art. 109 o procedimento para aplicação da prescrição no processo penal, e por sua vez o Estatuto de Roma informa em seu art. 29 que todos os crimes de competência do Tribunal são imprescritíveis.

Para o controle de convencionalidade, vamos nos atentar ao que dispõe a Carta Maior em seu artigo 5º:

Art. 5º (…)

XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;

Diferentemente dos demais casos elencados nos itens anteriores, existe certa pacificidade em relação ao debate sobre o tema da imprescritibilidade no âmbito judicial. O STF no RE 460.971/RS, entendeu que não existe óbice para inclusão de novos tipos imprescritíveis no ordenamento jurídico vigente.

 Aqui, entende-se que, por ser instrumento de ampliação, e não restrição de garantias de Direitos Humanos, uma vez que tratar-se de medida que visa coibir práticas criminosas, não há a incompatibilidade constitucional, mas que a ausência de legislação que autorize a ampliação desse rol de crimes imprescritíveis prejudica a validade do argumento de constitucionalidade, já que coloca o ônus em quem tem a prerrogativa de legislar sobre direito e processo penal (União).

 Assim sendo, entende-se que a antinomia existe, e enquanto não for sanada através de regulamento próprio, continuará a prejudicar a Segurança Jurídica do país, mas que dentre as incompatibilidades vigentes, esta, por tratar-se de ampliação, e não supressão da base principiológica de Direitos Humanos da CF/88, é facilmente sanada com a simples inclusão dos crimes previstos no Estatuto de Roma no Código Penal acompanhada da previsão de imprescritibilidade.

III – AUSÊNCIA DO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE E A SEGURANÇA JURÍDICA

O problema chave de todas as questões de incompatibilidade acima mencionadas está justamente no fato de não existir qualquer controle de convencionalidade quanto a validade das previsões do Estatuto de Roma no ordenamento jurídico brasileiro.

Ainda que no plano internacional constata-se a plena vigência do Estatuto no país, entende-se que numa aplicação prática das regras do Tribunal Penal Internacional a discussão não seria tão pacífica quanto parte da doutrina tenta mostrar que é. Vez que, internamente existem as mais diversas opiniões e posicionamentos técnicos sobre a aplicabilidade. E mais uma vez mencionamos o fortíssimo teor político que as condutas internacionais têm no plano interno, sejam elas jurídicas ou administrativas.

O Risco a que os Poderes constituídos da República submetem toda a credibilidade brasileira perante a comunidade internacional ao não legislar sobre o tema é sem precedentes no que tange ao cumprimento de documentos internacionais. Ainda que exista lei ordinária tramitando (de forma morosa e estacionada) no Congresso, entende-se que essa não é suficiente pela sua própria hierarquia.

Apesar do projeto prever avanços importantes para o direito internacional público e privado, principalmente tentando sanar questões de antinomia trazidas pelo Estatuto de Roma, algumas questões precisam ser debatidas na esfera constitucional. A questão da Entrega e da pena de prisão perpetua supera a mera publicação de uma lei ordinária que regula o tema, já que esses dois quesitos estão fincados nas bases democráticas das quais o ordenamento jurídico brasileiro tira seu sustento através de cláusula pétrea.

É pacífico que a mutabilidade de uma cláusula pétrea somente será possível através de um novo poder constituinte: Daí advém a necessidade de um debate mais amplo e profundo sobre como esse controle de convencionalidade deveria ser feito, inclusive com participação da sociedade.

Não é viável que se debata uma nova constituição somente para adaptar-se à um documento internacional. Contudo, o Brasil também não pode ficar alheio às instituições internacionais e acompanhar com proximidade como a sociedade internacional se comporta nos temas afetos à proteção dos Direitos Humanos.

Logo, é sabido que por força do costume e da própria cultura legislativa e judicial brasileira, tem-se a praxe de enfrentar os problemas somente quando eles estouram ou estão perto de estourar. No caso do Estatuto de Roma, a situação se mostra mais delicada, uma vez que no plano internacional entende-se que quando o Brasil for requisitado este deverá cumprir o que se dispôs imediatamente, enquanto no plano interno uma avalanche de ações serão propostas para serem debatidas e validadas, o que por sua vez prejudicará o cumprimento no plano internacional, já que, obviamente se prestigiará as instituições internas e não o TPI.

Essa situação coloca parte da segurança jurídica a que é conferida ao Poder Judiciário em xeque, já que este não poderá agir sozinho (por princípios básicos da República Federativa) e as instituições internas cuidarão da usual morosidade que já é rotineira. Do plano doméstico é uma situação comum, mas do plano internacional ainda pode-se dizer que o Brasil goza de moderado prestígio e cooperação, e mesmo nas negativas de cumprimento de documentos internacionais apresenta justificativas técnicas, bem como participa da maior parte das Cortes externas.

Uma eventual negativa de cumprimento com a justificativa de incompatibilidade com a legislação interna, sem dúvidas colocaria o Brasil na posição de pária, e não afetaria somente a credibilidade internacional; sanções poderiam ser previstas, exclusões de grupos estratégicos, bem como o afastamento em quadros em que o Brasil já está consolidado.

IV – CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Segurança jurídica é pedra angular em qualquer sociedade democrática de direito. Não depender de atos autoritários e imprevisíveis, sabendo que existem instituições responsáveis por resguardar os Direitos de seus cidadãos é peça fundamental para o desenvolvimento de qualquer povo. Assim sendo, ao se permitir arranhar essa segurança jurídica, ou prever eventual dano a ela e se manter inerte é uma conduta no mínimo arriscada, que não coloca em perigo uma ou outra autoridade, mas toda a coletividade.

O controle de convencionalidade a que deve submeter-se o Estatuto de Roma já está em atraso quase irremediável. Observou-se durante a pandemia de COVID 19, em todo o globo, significativo aumento de ações interpostas no TPI, inclusive contra o então presidente da República Jair Bolsonaro, com a respectiva aceitação da denúncia pelo Tribunal de Haia. Não se tem o escopo, aqui, de se discutir validade da denúncia, competência técnica do tribunal ou qualquer outra querela política, mas a clara possibilidade de que um processo seja instaurado na Corte Internacional com a existência de indubitável incompatibilidade de alguns institutos que ainda restam pendentes.

A única solução viável, para o caso, como já se explanou, seria a extensa discussão sobre o tema, que deveria ter sido feita antes da inclusão da submissão como cláusula pétrea, ou um possível afastamento da corte para adaptabilidade interna, com o objetivo de não incorrer em eventual descumprimento em decorrência de incompatibilidade. Essa última hipótese, ainda restaria problemática, uma vez que a submissão foi inserida como cláusula pétrea, e o afastamento restaria prejudicado, tendo em vista a própria natureza pétrea da norma.

 Independentemente à qual solução os Poderes decidam se filiar, não será possível escapar da necessidade de uma legislação que regulamente a situação, esteja ela em que nível hierárquico for. O Controle de Convencionalidade seria somente uma medida paliativa para um problema latente que atualmente é regulado por jurisprudências.

A imperiosa necessidade de se discutir a problemática da (in)segurança jurídica que o Estatuto de Roma representa para o ordenamento jurídico brasileiro, face a ausência do controle de convencionalidade, é uma controvérsia que deve ser discutida nos mais diversos níveis institucionais e com a necessária inclusão da sociedade, uma vez que se toca em temas sensíveis que afetam diretamente as garantias constitucionais (e pétreas) já conquistadas com os avanços desde 1988. Não é plausível que se espere provocar o judiciário através de uma querela vinda de Haia para que se passe a tomar providências quanto às antinomias existentes, o Legislativo DEVE, como medida de urgência, agir para proteger não só a segurança jurídica interna, mas a credibilidade brasileira perante as organizações internacionais.

REFERÊNCIAS

BITTENCOURT, Cezar Roberto. Pena de prisão Perpétua. Revista CEJ n. 11, pg. 4146, maio/agosto. 200

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 25/04/2022

BRASIL. Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, promulgado pelo Decreto n. 4.388, de 25 de setembro de 2002.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (1. Turma). Recurso Extraordinário 460971/RS. Relator: Min. Sepúlveda Pertence, 13 de fevereiro de 2007. Lex: jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, v. 29, n. 346, 2007, p. 515-522. Disponível em: <https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur6934/false> Acesso em: 25/04/2022

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Recurso Extraordinário 466343/RS. Relator: Min. Cezar Peluso, 03 de dezembro de 2008.DJe-104  DIVULG 04-06-2009  PUBLIC 05-06-2009 EMENT VOL-02363-06  PP-01106. Disponível em: <https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur323/false> Acesso em: 25/04/2022

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição 4625/República do Sudão. Relator: Min. Ellen Gracie. Decisão proferida pelo: Min. Celso de Mello, 17 de julho de 2009. DJe-145 DIVULG 03/08/2009 PUBLIC 04/08/2009. Disponível em: <https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/despacho117072/false> Acesso em: 25/04/2022

MIRANDA, João Irineu Resende, O Tribunal Penal Internacional Frente ao Princípio da Soberania, Londrina: Eduel, 2011.