
– Uma colisão típica de avenida de cidade grande numa estrada carroçável, no interior de Várzea Grande, que envolveu veículos de supostos rivais, provoca controvérsias
– O promotor de Justiça Ari Martins, que estava a responder pela promotoria de Elasbão Veloso, entendeu a princípio ser homicídio qualificado, previsto no Código Penal. Já o promotor Jaime Rodrigues D’Alencar, pediu a desclassificação do crime para homicídio culposo, previsto no Código de Trânsito Brasileiro
– Neste caso, a única informação da qual alguns não têm dúvidas, é a de que alguém identificado, pertencente a uma família que luta por justiça, morreu. Já sobre o resto a situação parece controversa para muitos que a acompanha
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Foto: Reprodução

_Imagens extraídas de vídeo gravado pela prima dos envolvidos, uma das primeiras que teria chegado ao local do ocorrido. A moto em destaque e o corpo da vítima próximo a ela
‘ACIDENTE’ DE AVENIDA DE CIDADE GRANDE
Uma colisão ocorrida na Localidade Chapada do Sítio Novo, zona rural de Várzea Grande, vem chamando atenção, tanto pela forma como ocorreu uma morte, quanto pelo fato de envolver rivais, além de que pelo posicionamento aparentemente dúbio de membros do próprio Ministério Público Estadual, quando da denúncia e nas alegações finais da primeira fase do Tribunal do Júri.
Os dois principais envolvidos neste caso são o acusado, Miguel Arcanjo de Sousa Leite, apontado pelas autoridades como responsável pela morte, e a vítima, Maurício Alves de Sousa Leite. Ambos teriam uma rixa devido a uma passagem de terra, o que não é incomum em propriedades na zona rural.
O caso teria ocorrido numa segunda-feira, numa estreita estrada íngreme, de barro, considerada “carroçal”, que só passa um veículo por vez (que quando um veículo vem, devagar, outro precisa parar), num trecho em meio à mata. Nesse cenário, portanto, imagens gravadas pela primeira pessoa que chegou ao local, uma prima de ambos os envolvidos, evidenciam um acidente violento, com o veículo sem muita potência (FIAT UNO WAY 1.0), que era pilotado por Miguel Leite, capotado, incendiado, com fogo na vegetação, árvore caída, e o corpo sem vida de Maurício Leite logo mais à frente, próximo à moto que pilotava, arremessado violentamente contra uma cerca e uma árvore, em meio a chamas e com traumatismo craniano cervical, segundo documento técnico.

Um laudo pericial apontou que a causa determinante da colisão, que causou o óbito de Maurício Alves de Sousa Leite, foi o comportamento do denunciado, que teria deixado de guardar distância de segurança em relação à motocicleta da vítima, colidindo com o “setor anterior” da motocicleta – neste caso, o contrário de “setor anterior” seria “setor posterior”.

O acusado estava com outra pessoa no carro, o mecânico Vanderlan Nonato dos Santos. À Justiça, em meio às inquirições, este disse, segundo os autos:
“(Senhor Vanderlan, no dia que o Maurício foi morto o senhor tava junto do Miguel é isso?) Isso. (O senhor tava no carro com o Maurício é isso?) Eu andava com o Miguel. (Ah, desculpa oi senhor tava no carro com o Miguel) Isso, mas isso era o motoqueiro. (Tá me conta como é que foi?) Sim, foi à tarde, eu tinha… eu tava em casa consertando uma cerca lá e mexendo uns pneu véi de moto, quando a mulher dele me ligou pra mim ajudar a pegar o carro na roça, tava quebrado, aí eu fui pra casa dele e de lá nós foi, pegueno as ferramentas que precisava, chave, umas coisas assim, e fomos pro destino do carro, aí foi onde aconteceu. (Tá, mas aconteceu como? Como é que foi?) Nós ia e a a moto vinha em sentido contrário, camin carroçal, que era roça, carroçal, barro mesmo. (Vocês tavam indo e a moto tava vindo em sentido contrário. E quem bateu em quem? Quem que tava na preferencial?) Assim, a preferência na carroçal o caminho é estreito, só cabe um carro no caso, entendeu? No lado que você tiver tá cheio. (Em que velocidade vocês estavam?) A gente ia conversando sobre o carro mesmo aí eu não me liguei qual era o velocímetro não. (Mas o senhor não tem ideia? Tava devagar ? Tava rápido?) Rápido demais não, porque estrada carroçal ninguém anda rápido não. (O senhor conseguiu identificar que quem tava vindo na moto era o Maurício?) No entanto, eu pensei que era um vizinho de terra assim, que é um caminho que passa para as outras, entendeu? Aí por a moto ser igual eu pensei que era um tio meu até, “Da Cruz”, que tem uma propriedade do lado, que criava bode. (O Maurício tava com algum capacete? Alguma coisa assim?) Não, capacete não, nós encontramos uma pessoa de capuz sabe? Mas também nós ia na viajem nossa. (Vocês encontraram com essa pessoa antes?) Antes. (Tá, essa pessoa tava indo na mesma mão que vocês?) Não, quando nós encontremos… é isso, um ia e outro vinha, justamente, só que… (Não, o senhor não entendeu, o senhor disse que encontrou uma pessoa que tava na moto, no caminho e essa pessoa tava com capuz) Isso. (Essa pessoa que vocês encontraram que tava com capuz, ela tava na mesma mão que vocês?) Não, que a estrada é estreita. (Vocês tavam indo e essa pessoa da moto tava indo também?) Não, primeiro, nós encontremo, vindo, aí nós fomos ver se o colchete tava fechado, aí foi onde a moto vinha e bateu. (Essa pessoa que tava de capuz era o Maurício?) Não deu pra tirar a conclusão certeza, realmente, sabe?, Porque pela moto tinha esse “Da Cruz” que tinha terreno do lado, poderia ser né?. (Vocês cruzaram então em dois momento com a moto, é isso?) Foi. (Tá, nessa primeira vez que vocês cruzaram, essa pessoa estava de capuz?) Capuz. (Tá, e na segunda vez vocês conseguiram ver que a pessoa era o Maurício) Da segunda vez quando bateu. (Da vez quando bateu o Maurício tava com capuz?) Tava de capuz ainda. Agora é seguinte, quando bateu, apesar do movimento da poeira e tudo, eu vim ter certeza, que eu também tava machucado, quando já estava no hospital. (Tá, então a pessoa contra a qual o carro bateu tava com o capuz é isso?) Tava com o capuz […]”
Nas imagens captadas pela primeira pessoa que teria chegado ao local não é possível ver um capuz, só um corpo lançado sobre uma cerca de forma violenta e fogo em volta, que não chegou a incendiá-lo. Ninguém dá notícias da existência de um capuz, seja na cabeça da vítima, que está com o rosto descoberto, seja em eventuais bolsos ou outra parte das vestimentas.
Membros da família acreditam que o fogo no local teria sido provocado para destruir provas importantes.
Além de que, corpo e moto foram parar no mesmo lugar, próximos um ao outro, o que corroboraria a tese de que ela foi atingida por trás, já que se tivesse existido uma colisão frontal, a depender da dinâmica, o corpo se projetaria para cima do carro, ou por sobre ele. E aparentemente não foi o que ocorreu.
Atingida por trás, a moto teria ganhado mais velocidade e se projetado contra a cerca e a árvore, batendo de frente, de forma contundente, contra troncos. E na colisão o carro teria perdido o controle.
Também não há informações sobre se houve uma perseguição entre veículos, no qual a intenção era bater, tirar o desafeto do caminho, provocar o acidente e seguir em diante (com tudo, entretanto, saindo fora do controle, com capotamento e morte). Neste caso, em tese, se assumiria o risco da empreitada.

Quanto à velocidade no momento desse atrito, ninguém sabe precisá-la, muito menos a do veículo, que foi encontrado posteriormente incendiado.
Também não se sabe com precisão o real motivo do incêndio.
O local onde se deu os fatos pertenceria a uma área particular de Miguel Arcanjo. A “passagem”, no entanto, serviria para trânsito dos que trabalham e moram na região, nas proximidades, e não poderia, em tese, ser impedida, por ser um trecho de uso necessário e comum aos demais.
A confusão existente era em face dessa porteira que Maurício abria para passar o gado e deixava aberta, e Miguel queria mantê-la fechada. Um abria e não fechava, e o outro fechava. Daí o suposto conflito.
Quando da batida entre os veículos, Miguel Arcanjo diz que não prestou socorro porque ouviu uns “pipoco”. Disse que no pensamento dele seriam disparos de arma de fogo e que não ouviu de onde estava vindo porque estava “atordoado”. E que só fez “correr”.
Ele para um lado e o mecânico para o outro, segundo a versão do acusado.
Também disse que “tava com medo” de “seu Maurício”, que estava morto, vir matar a família do acusado.
Arcanjo saiu do local, tomou uma moto emprestada e procurou a polícia, sem prestar os primeiros socorros. Os familiares da vítima dizem que ele é motorista do SAMU, e que o comportamento vai de encontro ao que ele vê em sua profissão.
O delegado de polícia Felipe Emanuel não prendeu nem pediu a prisão de Arcanjo, reportou que ele se apresentou espontaneamente, e que ele diz que ouviu disparo de arma de fogo e por isso não teria prestado socorro à vítima.
O acidente teria ocorrido antes de 14h40, de dia, portanto, com iluminação natural.
Já a perícia foi feita à noite, com iluminação precária.

Em seu primeiro movimento, no entanto, o promotor de Justiça Ari Martins denunciou Miguel Arcanjo. Sustentou na denúncia, quando respondia pela promotoria de Justiça de Elesbão Veloso, que o acusado “ceifou a vida de Maurício Alves de Sousa Leite, por motivo torpe, e valendo-se de recurso que dificultou a defesa da vítima, conduta esta tipificada no art. 121, §2º, I e IV, do Código Penal”.
Afirma que “no dia 23 de outubro de 2023, por volta das 14h40min, o ora denunciado trafegava em seu veículo FIAT UNO WAY 1.0, placa PAM1686, cor vermelha, quando, ao cruzar com a vítima, que trafegava em sua motocicleta Honda BROS ESDD, placa QRR9H67, cor vermelha, colidiu, de forma dolosa, com o veículo desta, lançando-a contra uma cerca de madeira”.
Sustenta que “após a colisão dolosa, o ora denunciado, não prestando qualquer socorro, e demonstrando profundo desprezo pelas consequências de seus atos, debandou-se da cena do crime, e dirigiu-se até a GPM de Várzea Grande – PI, onde comunicou os fatos, em flagrante ardil”.
Para Ari Martins, “é clara a qualificadora do motivo torpe, já que, segundo depoimento de testemunhas colhidos durante investigação policial, o denunciado possuía rixa com a vítima, motivada por terras, há muito tempo, valendo-se da via de trânsito para exteriorizar seu desejo de aniquilação do adversário”.

Seguiu acrescendo que “a testemunha José de Sousa Leite afirma que há muito tempo a vítima e o denunciado possuíam desavenças, motivadas por terras e pelo direito de passagem de uma propriedade rural. Inclusive, conforme relatou a testemunha, o denunciado já teria provocado a vítima em uma outra ocasião”.
Em outro trecho da denúncia, o membro do Ministério Público afirma que “não obstante a rixa que existia entre o ofensor e o ofendido, em seu interrogatório, o denunciado afirmou que, após o acidente, escutou pipocos e simplesmente saiu correndo, pois temia que a vítima matasse sua família, o que demonstra claramente o seu desprezo e o seu objetivo de esquivar-se às responsabilidades civis e penais em decorrência da sua ação”.
O acusado, dias antes do crime, havia registrado queixa contra a vítima e contra o pai da vítima, mas a intimação não chegaria a ser entregue a Maurício Leite, já que ele viria a falecer.

_Pessoas que chegaram ao local procurando saber se Maurício ainda estava com vida, próximo à moto
Segundo a testemunha Ednilson Lopes da Silva, Policial Militar, ao tratar sobre a intimação e o horário que entrou em contato com Maurício para intimá-lo e o horário do ‘acidente’, assim reporta, quando em juízo, em audiência de instrução e julgamento:
“Eu tinha encontrado o Maurício no trailer do Milson lá no centro da cidade, mas não tinha conhecimento dessa intimação, quando eu cheguei no GPM que recebi essas intimações, aí entrei em contato via celular com o Maurício, ele dizendo: “Ednilson vou já aí pra receber essas intimações”. Aí eu disse, pois tá ótimo, eu vou aguardar aqui, e tinha falado que a intimação era pra ele e pro pai dele, aí ele procurou saber o motivo pelo qual o pai dele tinha sido intimado, aí eu falei que não sabia, só ia saber lá na Delegacia Regional de Elesbão Veloso. (Isso mais ou menos que horas da segunda-feira? Esse contato que você teve com ele?) O contato foi mais ou menos por volta das… entre onze horas e doze horas, mais ou menos. (A ocorrência lá foi por volta de que horas da tarde?) Por volta… quando o Miguel chegou no local do GPM, era umas quatorze e quarenta, então acredito que foi umas quatorze horas, mais ou menos”.
MUDANÇA DE POSICIONAMENTO
Após a audiência de instrução e julgamento, um outro promotor de Justiça que atuou no caso, Jaime Rodrigues D’Alencar, respondendo pela promotoria de Justiça de Elesbão Veloso, através de Memoriais de Alegações Finais pediu ao juízo responsável a desclassificação do crime de homicídio qualificado para crime de trânsito, sem intenção de matar, “nos termos do art. 302, § 1°, III, do Código de Trânsito Brasileiro”, buscando responsabilizá-lo ainda por não prestar socorro, além de pedir indenização, “a título de dano moral, do valor equivalente a 10 (dez) salários mínimos, por arbitramento, em razão do abalo que a conduta do réu causou à sociedade e à família da vítima”.
Num dos trechos dos memoriais, Jaime Rodrigues ainda chegou a afirmar: “Visto isso, tem-se que, encerrada a instrução do presente feito, exsurge com clareza, do acervo probatório amealhado durante toda a persecução penal que, na data, no horário e no local consignados na denúncia, o acusado praticou o crime de homicídio qualificado, conforme delineado em exordial acusatória”.
O que pode ser considerado um erro material.
Em seguida externou: “analisando detidamente o processo, bem como todo o conjunto probatório colhido, chega-se à conclusão que o réu praticou o crime de homicídio culposo na direção de veículo automotor, previsto no art. 302, § 1º, III, do Código de Trânsito Brasileiro”.
Para a família, em sendo assim, neste caso não haverá Justiça.
É neste cenário que uma boa investigação não deve servir somente para apontar culpados, mas para ceifar as eventuais dúvidas sobre eventual inocência, e no caso, há muitas perguntas em aberto e que vão permanecer em aberto.