A CESSÃO DE JURISDIÇÃO CRIMINAL PERANTE O ESTATUTO DE ROMA E SUA RELATIVIZAÇÃO EM FACE DA NORMA DOMÉSTICA VIGENTE
RONY DE ABREU TORRES
Artigo científico desenvolvido como exigência para obtenção do título de Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Escola Superior de Advocacia do Piauí
TERESINA, PI
2021
RESUMO
O trabalho se propõe a analisar a aparente impossibilidade de cumprimento no que se refere à cessão de jurisdição penal em face do Estatuto de Roma promovida pela inclusão do §4º no art. 5º da Constituição Federal informando que o Brasil se submete à jurisdição do Tribunal Penal Internacional nos termos do que dispõe o Estatuto de Roma, que se inseriu na legislação brasileira sem o quórum qualificado previsto no art. 5º, §3º da Carta Magna e, portanto, com status infraconstitucional. Logo, é de premente necessidade a discussão do tema, tendo em vista a falta de legislação que discipline a relativização da jurisdição doméstica, e da constituição enquanto documento maior da justiça brasileira, em caso de autorizada intervenção do Tribunal Penal Internacional. Observando, separadamente, cada um dos crimes dispostos pelo Estatuto de Roma, notou-se como se daria eventual intervenção jurisdicional do órgão internacional no caso de julgamento de brasileiro, apontando-se, portanto, que não é o suficiente o projeto lei que tramita morosamente no Congresso, mas é necessária uma discussão complexa e desvelada sobre a regularização jurisdicional do Tribunal Penal Internacional, que vá além do Estatuto de Roma, e da presunção de que esse por si só suplanta todas as inconstitucionalidade que podem resultar de sua aplicação na forma como está.
Palavras-chave: Tribunal Penal Internacional; Estatuto de Roma; Crimes Contra a Humanidade; Conflito jurisdicional; Competência.
ABSTRACT
The work proposes to analyze the apparent the apparent impossibility of fulfillment referring to cession of criminal jurisdiction in the light of the Rome Statute promoted by the inclusion of §4 art. 5 of the Federal Constitution stating that Brazil submits to the jurisdiction of the International Criminal Court under the terms of the Rome Statute, which was included in Brazilian legislation without the qualified quorum required in art. 5, §3 of Brazil’s magna carta and, therefore, with infra-constitutional status. Therefore, it is of pivotal necessity to discuss the topic, considering the lack of legislation that regulates the relativism of domestic jurisdiction, and the constitution as the major document of Brazilian justice, in case of authorization for intervention by the International Criminal Court. Analyzing, separately, each of the crimes assorted by the Rome Statute, it can be observed how the eventual international body’s jurisdictional intervention would take place in the case of a Brazilian citizen being judged, indicating, thus, that the bill that proceeds slowly at the Brazilian Congress is insufficient, but a complex and unveiled discussion is needed on the jurisdictional regularization of the International Criminal Court, which goes beyond the Rome Statute, and the presumption that this alone overtook all the unconstitutionalities that may result from its application in the way it is.
Key-words: International Criminal Court. Rome Statute. Crimes Against Humanity. Jurisdictional Conflict. Jurisdiction.
A escolha do Mal menor – Um mal é um mal. Menor, maior, médio, tanto faz… As proporções são convencionadas e as fronteiras, imprecisas.” – Geralt de Rivia – Andrzej Sapkowski, The Witcher: O ultimo desejo
LISTA DE ABREVIATURAS
ADI | Ação Direta de Inconstitucionalidade |
CF | Constituição Federal |
CP | Código Penal |
CPP | Código de Processo Penal |
CR | Carta Rogatória |
EUA | Estados Unidos da América |
LINDB | Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro |
ONU | Organização das Nações Unidas |
PL | Projeto de Lei |
RC RES | Resolução por consenso Resolução |
RE | Recurso Extraordinário |
RR | Recurso de Revista |
STF | Supremo Tribunal Federal |
TPI | Tribunal Penal Internacional |
URSS | União das Repúblicas Socialistas Soviéticas |
SUMÁRIO
Sumário
II – JURISDIÇÃO PENAL INTERNA E EXTERNA.. 10
III – O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL. 16
IV – HIERARQUIA DAS NORMAS. 20
V – A COMPETÊNCIA PENAL DOS TRIBUNAIS INTERNOS EM CRIMES PREVISTOS PELO TPI 23
V.II – Crimes Contra a Humanidade. 27
VI – O CONFLITO DE JURISDIÇÃO NO QUE TANGE AOS CRIMES PREVISTOS NO ESTATUTO DE ROMA.. 35
I – INTRODUÇÃO
A colaboração internacional para o significante desenvolvimento dos Direitos Humanos, estejam eles no espectro civil ou penal, depende em muito do avanço do Direito Penal Internacional, tendo em vista seus princípios educativos, coercitivos e de busca de justiça, para aqueles que atentam contra garantias fundamentais não sejam abraçados pela impunidade decorrente de algum poder que possuam.
O Estatuto de Roma se apresenta como uma das mais modernas ferramentas do Direito Penal Internacional, que vai além da responsabilização estatal, dando corpo e forma para as mentes responsáveis pelas condutas estatais que acarretam os crimes de acordo com a comunidade internacional.
O Brasil, desde seus primórdios, inclusive até nos seus momentos mais sombrios, contribuiu de forma direta ou indireta para o desenvolvimento de organismos que representassem um farol para aplicação dos Direitos Humanos e estabilidade internacional. Foi membro fundador da Liga das Nações e da ONU, bem como do Tribunal Penal Internacional, estando presente na elaboração do Estatuto de Roma e nas suas demais emendas.
A tradição pacifista e diplomática adotada pelo Estado Brasileiro apresentou poucas possibilidades de desenvolvimento do Direito Internacional Penal, retardando, assim, o aprimoramento da legislação interna no que tange a colaboração com cortes internacionais, ou mesmo o desenvolvimento de seu próprio Direito Internacional Interno, que permitiria uma maior adaptabilidade para situações que ainda não ocorreram.
Esse fato fica evidente quando se analisa com mais cuidado a cessão de jurisdição feita pela Constituição Federal de 1988 em favor do Tribunal Penal Internacional, a qual não teve qualquer tipo de adaptabilidade da legislação interna para poder adimplir com o compromisso internacional, sem precisar relativizar a própria constituição e sua base principiológica, tendo em vista que o TPI é regulado pelo Estatuto de Roma, possuindo algumas disposições conflitantes com a legislação brasileira e, dentre suas cláusulas – aceitas pelo Brasil – existem disposições como: “O Estado parte, não poderá alegar disposição de legislação interna por descumprir preceitos do referido Estatuto”.
A doutrina internacional do Brasil há muito discute diversas questões de adaptabilidade do referido Estatuto da forma como está, sem a necessidade de qualquer outro documento que o regule no contexto interno. Contudo, o trabalho estabelecerá uma análise mais profunda do tema, tendo em mente que a discussão não se fixa unicamente na doutrina judicial, mas que, ao tratar-se de relações internacionais, o contexto político muitas vezes suplanta o direito, como bem se observou quando se submeteu o Brasil à jurisdição do TPI, inserida essa normativa em cláusula pétrea, sem a devida discussão que o tema exigia, e provavelmente sobre protesto de doutrinadores penalistas.
Ao ceder jurisdição, afeta-se, diretamente, não somente a instituição jurisdicional do Brasil, mas todo um corpo de princípios desenvolvidos por anos pela doutrina e jurisprudência, sendo necessário, portanto, bem mais do que uma cláusula impositiva que, em tese, desconsideraria tudo que foi construído até o momento sobre jurisdição e aplicação da lei penal. Observa-se que, uma eventual hipótese em que se exija tal cessão de jurisdição, possivelmente haverá um confronto direto entre legislação interna e externa, confusão na própria legislação interna que incorporou o documento externo e sobretudo o interesse político, tendo em vista que na maior parte dos casos (quase sua totalidade), as pessoas que são julgadas pelo TPI são chefes de Estado ou ocupam o alto escalão da administração Estatal, com grande influência no Estado que cedeu sua jurisdição ao TPI, tendo-se assim evidente intervenção política na aplicação do direito interno – fato esse que não deve ser desprezado.
O referido trabalho teve como metodologia de pesquisa a exploratória e explicativa utilizando-se o método bibliográfico e ex-post-fact abordando o tema no sentido de que a ausência de regime próprio que discipline o tema acarretaria um dano de difícil reparação para imagem e segurança jurídica do país.
Assim sendo, é imperioso que se entenda a real problemática advinda da falta de regulamentação na legislação doméstica sobre os procedimentos a serem adotados para ceder jurisdição ao órgão internacional, sem que se afronte diretamente disposições constitucionais ou princípios já consolidados.
II – JURISDIÇÃO PENAL INTERNA E EXTERNA
Ao se falar em jurisdição, de maneira geral, entende-se por um poder estatal concedido a um dos Poderes constituídos (neste caso o judiciário) para, dentro de sua competência, mediar determinado litígio, restrito à uma delimitação geográfica que especifica e determina quais regras serão aplicadas àquele caso concreto. O professor Antônio Cintra (2006, p 145). afirma que jurisdição é:
A função que o Estado exerce quando substitui a vontade dos titulares dos interesses em conflito pela vontade do direito objetivo que rege a controvérsia apresentada, promovendo a pacificação individual das partes e da sociedade. Desta forma, a jurisdição é a capacidade do Estado de decidir imperativamente e impor decisões.
Observa-se ainda que a jurisdição, sobretudo no que tange à cooperação internacional, ganha tratamento privilegiado, mas no código de processo civil, que se difere em tópicos chaves da complexidade de análise do caso concreto que exige o processo Penal. No caso do CPC o capítulo II do artigo 26 ao 41 trata-se de toda a questão procedimental para cooperação jurisdicional, sem que se tenha, com essa cooperação, uma violação direta de princípios constitucionais. Dessa forma, podemos citar o artigo 26, do Código de Processo Civil (BRASIL, 2015) que vai tratar da questão principiológica:
Art. 26. A cooperação jurídica internacional será regida por tratado de que o Brasil faz parte e observará:
I – o respeito às garantias do devido processo legal no Estado requerente;
II – a igualdade de tratamento entre nacionais e estrangeiros, residentes ou não no Brasil, em relação ao acesso à justiça e à tramitação dos processos, assegurando-se assistência judiciária aos necessitados;
III – a publicidade processual, exceto nas hipóteses de sigilo previstas na legislação brasileira ou na do Estado requerente;
IV – a existência de autoridade central para recepção e transmissão dos pedidos de cooperação;
V – a espontaneidade na transmissão de informações a autoridades estrangeiras.
§ 1º Na ausência de tratado, a cooperação jurídica internacional poderá realizar-se com base em reciprocidade, manifestada por via diplomática.
§ 2º Não se exigirá a reciprocidade referida no § 1º para homologação de sentença estrangeira.
§ 3º Na cooperação jurídica internacional não será admitida a prática de atos que contrariem ou que produzam resultados incompatíveis com as normas fundamentais que regem o Estado brasileiro.
§ 4º O Ministério da Justiça exercerá as funções de autoridade central na ausência de designação específica. (grifos do autor).
Logo, tomando como base inicial o que dispõe a legislação civil, podemos extrair algumas informações importantes, que já não se aplicam para a principiologia de tratamento que se dá ao Tribunal Penal Internacional. Primeiramente observa-se que já no inciso I, tem-se como parâmetro que a cooperação far-se-á com um Estado. Diferente das disposições do TPI, não se considera que a relação entre o Estado e o Tribunal de Haia seja uma relação comum de Estado-Estado, e sim de Estado-Organização Internacional. Essa é a base para diferenciar o instituto da extradição e da entrega, uma vez que, em regra, o país não pode extraditar seu nacional para outro Estado, mas pode “entregar” ao TPI, já que esse não é um Estado e sim uma OI.
Já o §3º indica a supremacia jurisdicional brasileira, no que tange ao tratamento ou práticas que vão de encontro aos princípios firmados pela Constituição Federal de 88. Informando que a cooperação internacional não poderá atentar contra normas fundamentais da Constituição. E o Ministério da Justiça, órgão eminentemente político, assim como o ministério das relações exteriores, é que exercerá as funções de autoridade nessas tratativas.
Dessa conceituação ainda pode-se aferir que “jurisdição” se difere de “competência”, uma vez que aquela é um poder conferido pela Carta Magna para mediar o conflito com base no direito, enquanto essa é a delimitação desse poder conferido, estabelecendo quais regras seguir e qual o juiz (ou juízo) será o competente para resolver aquele litígio.
Mas essas questões, como dito, estão atreladas à competência civil, sendo aplicadas subsidiariamente ao Processo Penal. Quando passamos a analisar o a legislação criminal, em sua parte processual, o poder jurisdicional está intimamente ligado ao instituto da competência, de forma direta ou indireta utilizando este último como parâmetro para aplicação das regras jurisdicionais. Senão vejamos algumas disposições do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941) que reforçam essa tese:
Art. 70, § 3o – Quando incerto o limite territorial entre duas ou mais jurisdições, ou quando incerta a jurisdição por ter sido a infração consumada ou tentada nas divisas de duas ou mais jurisdições, a competência firmar-se-á pela prevenção.
Art. 74, § 2o Se, iniciado o processo perante um juiz, houver desclassificação para infração da competência de outro, a este será remetido o processo, salvo se mais graduada for a jurisdição do primeiro, que, em tal caso, terá sua competência prorrogada.
Art. 78. Na determinação da competência por conexão ou continência, serão observadas as seguintes regras:
I – no concurso entre a competência do júri e a de outro órgão da jurisdição comum, prevalecerá a competência do júri;
IV – no concurso entre a jurisdição comum e a especial, prevalecerá esta.
Art. 83. Verificar-se-á a competência por prevenção toda vez que, concorrendo dois ou mais juízes igualmente competentes ou com jurisdição cumulativa, um deles tiver antecedido aos outros na prática de algum ato do processo ou de medida a este relativa, ainda que anterior ao oferecimento da denúncia ou da queixa
Art. 113. As questões atinentes à competência resolver-se-ão não só pela exceção própria, como também pelo conflito positivo ou negativo de jurisdição.
Art. 761. Para a providência determinada no art. 84, § 2o, do Código Penal, se as sentenças forem proferidas por juízes diferentes, será competente o juiz que tiver sentenciado por último ou a autoridade de jurisdição prevalente no caso do art. 82.
(grifos do autor)
Observando o CPP, é possível ainda concluir que o Processo Penal Internacional Privado fica adstrito ao que dispõe o documento internacional. O que por si é insuficiente para solucionar as inúmeras questões processuais internas que serão sanadas com base na analogia ou em princípios gerais. Sem uma regra prática expressa.
O CPP, ainda em seu artigo primeiro, inciso I, informa que: “O processo penal reger-se-á, em todo o território brasileiro, por este Código, ressalvados: os tratados, as convenções e regras de direito internacional”. Colocando assim a legislação doméstica ao que dispõe as regras internacionais, que muitas vezes apresentam conflito normativo com a Constituição Federal de 88.
Considerando-se o até aqui exposto, constata-se, para fins de análise, que existe um contraste singular no que tange a jurisdição interna e externa (internacional), havendo assim uma regra específica para jurisdição doméstica, que muitas vezes se encontra na própria constituição estatal e em leis espaças (como é o caso do Brasil) disciplinando qual juízo é competente para cada caso, seja por competência material ou territorial e outra regra distinta para a jurisdição alienígena.
Quando se passa para a análise da jurisdição externa, não basta apenas verificar o que está codificado na norma pátria (no caso do Brasil a LINDB), mostrando-se necessário um olhar mais profundo e acurado, tendo em vista que as regras de jurisdição internacional transcendem a delimitação geográfica soberana de um país, e não raras vezes conflituam diretamente com a jurisdição externa. Logo, para se analisar a jurisdição externa, é necessário primeiramente delimitar o tema de discussão, que pode ser o mais variado possível (mar, penal, civil, ambiental, de guerra, de defesa etc.).
No caso em comento, analisaremos a Jurisdição do Tribunal Penal Internacional (TPI) que foi inserida na Carta Magna, no rol de cláusulas pétreas, previstas no art. 5º da Constituição (BRASIL, 1988).
§ 4º O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão.
Observando haver manifestação expressa do legislador brasileiro em submeter-se à jurisdição do TPI, podemos constatar dois fatos: 1 – a jurisdição externa ou internacional não necessariamente precisa constar expressamente inserida na legislação interna, sendo necessário somente a ratificação do tratado ou convenção internacional que originou o aceite a determinada jurisdição; 2 – o fato de ter sido inserido como parágrafo no art. 5º da CF/88 que trata sobre garantias fundamentais – individuais e coletivas – denota o status de importância que o legislador pretendeu dar ao Tribunal Internacional, visto que o referido artigo encontra-se no rol de cláusulas pétreas que somente um novo poder constituinte originário poderia modificar no sentido de abolir, conforme o próprio art. 60 §4º da Carta Maior leciona:
Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
[…]
§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I – a forma federativa de Estado;
II – o voto direto, secreto, universal e periódico;
III – a separação dos Poderes;
IV – os direitos e garantias individuais.
(grifos do autor)
Mantendo os dois pontos acima em mente, pode-se tomar como exemplo outros tipos de jurisdições, as quais advêm diretamente de documentos internacionais e que, diferentemente do que foi disposto com a jurisdição do TPI, apesar deste proibir reservas aos seus artigos bases, os exemplos a seguir denotam uma preocupação em dar maior relevância a soberania e regras de jurisdição interna. É o caso da Convenção de Viena de 1969, que foi aprovada com reservas aos artigos 25 e 66 (BRASIL, 2009), senão vejamos os mencionados artigos:
Artigo 25
Aplicação Provisória
1. Um tratado ou uma parte do tratado aplica-se provisoriamente enquanto não entra em vigor, se:
a) o próprio tratado assim dispuser; ou
b) os Estados negociadores assim acordarem por outra forma.
2. A não ser que o tratado disponha ou os Estados negociadores acordem de outra forma, a aplicação provisória de um tratado ou parte de um tratado, em relação a um Estado, termina se esse Estado notificar aos outros Estados, entre os quais o tratado é aplicado provisoriamente, sua intenção de não se tornar parte no tratado.
Artigo 66
Processo de Solução Judicial, de Arbitragem e de Conciliação
Se, nos termos do parágrafo 3 do artigo 65, nenhuma solução foi alcançada, nos 12 meses seguintes à data na qual a objeção foi formulada, o seguinte processo será adotado:
a) qualquer parte na controvérsia sobre a aplicação ou a interpretação dos artigos 53 ou 64 poderá, mediante pedido escrito, submetê-la à decisão da Corte Internacional de Justiça, salvo se as partes decidirem, de comum acordo, submeter a controvérsia a arbitragem;
b) qualquer parte na controvérsia sobre a aplicação ou a interpretação de qualquer um dos outros artigos da Parte V da presente Convenção poderá iniciar o processo previsto no Anexo à Convenção, mediante pedido nesse sentido ao Secretário-Geral das Nações Unidas.
(grifo do autor)
Em leitura rápida dos dois artigos, que não foram recepcionados pela legislação pátria, observa-se que, no que se refere ao art. 25, versando sobre a aplicação provisória do tratado, o Brasil resolveu manter com o Congresso o poder de decisão sobre as leis que entram em vigor no território brasileiro, repelindo assim a possibilidade de um tratado, que contenha compromisso significativo para o Estado, poder vigorar na legislação pátria antes que possa ser devidamente instruído e discutido nas casas legislativas. Já o artigo 66 que imprime a questão da jurisdição compulsória da Corte Internacional de Justiça em determinadas situações, como prescrição, o artigo, em tese, ignora as vias jurisdicionais domésticas, e no momento de aprovação pelo Congresso Nacional decidiu-se também por manter a autonomia interna com o poder legislativo.
Existem, portanto, diversas outras situações que se verifica esse tipo de tomada de decisão, que mantem a jurisdição brasileira como prioritária na solução de controvérsias sobre assuntos ocorridos em território nacional. Os dois exemplos acima mencionados, servem somente a título de exemplo comparativo para uma análise mais complexa, no intuito de tentar entender o porquê o mesmo raciocínio não foi levado em consideração (ou ignorado) no que tange ao Tribunal Penal Internacional e seu status legal dentro da legislação doméstica.
Por outro lado, é importante observar que, o Estatuto de Roma veda a possibilidade de algumas reservas, com a finalidade de torna-lo o mais homogêneo e aderente possível Às legislações domésticas dos mais diversos países. Senão vejamos o que o professor João Miranda (2011, p. 19) leciona sobre o tema:
Enquanto tratado internacional o Estatuto não admite reservas, podendo ser ratificado somente em sua integralidade, nos termos do art. 120. A Única exceção a essa regra é a disposição transitória do artigo 124, que permite ao Estado parte afastar a competência do Tribunal Penal Internacional sobre crimes de guerra, dispostos no art. 8º, por sete anos após o Estatuto entrar em vigor, desde que tenha formulado um pedido nestes termos no momento da ratificação.
Logo, o que se propõe nesse momento inicial de análise, e notar que apesar de, como se verá nos tópicos mais adiante, nitidamente alguns institutos do TPI afrontarem diretamente princípios da Carta Magna de 88, sua aprovação integral deu-se de maneira impositiva, no sentido de que, para participar dessa corte que representa ainda hoje um dos principais avanços no Direito Penal mundial, o Estatuto deveria ser aprovado da forma como estava, sem a possibilidade de alterações ou reservas. O que no contexto internacional faz sentido, uma vez que não se pode esperar que o Estatuto conceda reservas a todos seus membros, sob pena de se tornar inócua sua carta.
Entende-se que sua inserção, aparentemente precipitada, na CF/88 no rol de cláusulas pétreas, sem uma discussão mais aprofundada da adaptabilidade do Direito Penal e Processual Penal brasileiro às disposições do Estatuto de Roma, deveu-se a um momento em que o Brasil, enquanto Estado Nação, gozava de um relevante credibilismo internacional, e que para manter tal credibilismo, participou de diversas discussões, documentos, congressos e reuniões que tratavam de avanços nos direitos humanos e ambientais, sendo o Estatuto de Roma um deles. Tal ânsia de apresentar prestabilidade à comunidade internacional, quanto a participação no Tribunal de Haia, pode ter resultado numa discussão pífia e evidentemente insuficiente quanto aos conflitos entre o Estatuto de Roma e a Carta Constitucional de 1988.
III – O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
O Tribunal Penal Internacional, cujas regras de sua constituição estão previstas no Estatuto de Roma, é antes de tudo um Tribunal Internacional diferente dos demais de status constitucional, visto que se ocupa em julgar pessoas físicas, tem sua área de atuação delimitada a um rol fixo de crimes e exige aceite expresso de seu estatuto sem possibilidade de veto do Estado parte, para que algumas regras possam ser implementadas.
É importante entender que o Tribunal Penal Internacional foi criado em um contexto extremamente tribulado da história mundial, tendo seus trabalhos iniciais de constituição iniciados em meados de 1948 (pós Segunda Guerra Mundial), sofrendo uma pausa em decorrência da Guerra Fria (EUA x URSS) e somente ganhando destaque novamente em 1998 com a propositura do Estatuto de Roma em uma conferência diplomática de plenipotenciários das Nações Unidas.
O professor João Miranda (2011, p. 15) destaca que:
As condições determinantes da ordem internacional após a guerra fria e a proliferação dos conflitos de natureza étnica e religiosa introduziram novamente a discussão sobre a criação de um tribunal penal internacional, postergada por mais de 40 anos. O fim da bipolaridade Leste-Oeste possibilitou uma interpretação do paradigma da segurança coletiva, a qual permite o acionamento do conselho de segurança em casos de graves crises humanitárias. Esta interpretação teve como escopo enfrentar o recrudescimento de crimes como o genocídio durante a década passada. Estes fatores foram importantes para o processo que culminou com a instalação do Tribunal Penal Internacional, em 2002. Não obstante o fato de ter sido saudado como um marco para proteção internacional dos direitos humanos, o tribunal traz consigo uma série de questões ainda pendentes no tocante a sua atuação junto aos Estados.
Para o Brasil, somente em 07 de fevereiro de 2000 é que se teve a assinatura formal do Estatuto, que somente veio ser aprovado pelo Congresso em 06 de julho de 2002 (um período de quase dois anos para discussão do tratado) pelo decreto n° 4.388/2002.
Como dito anteriormente, o TPI prevê um rol taxativo de crimes sob sua guarda que permitem manter a jurisdição do Tribunal na seara criminal e especificamente avaliando condutas humanas que por ação ou omissão resultem nos crimes de Genocídio, Contra a Humanidade, de Guerra e de Agressão.
Dentre diversos aspectos peculiares do Estatuto de Roma pode-se destacar a possibilidade da “entrega” de nacional (instituto que é diferente da extradição – mas mantem as mesmas bases principiológicas), e as divergências por parte da doutrina sobre a interpretação e tipificação dos crimes de competência do TPI na seara interna e externa, a questão da imprescritibilidade de crimes, a incompatibilidade de penas e o foco deste trabalho: a questão jurisdicional.
Outra discussão relevante que se pode ter, ao analisar a atuação do Tribunal Penal Internacional na jurisdição doméstica de outros países, é que este encobre-se sobre o manto de uma organização internacional, se diferindo de instituições Estatais, e portanto exigindo tratamento diferente em relação ao direito internacional aplicado, como é o caso do instituto da entrega.
Com isso, diversas barreiras são suplantadas, como por exemplo, não existindo a violação de soberania, em tese, uma vez que as disposições impositivas e interventivas previstas no Estatuto, não estariam sendo praticadas por um Estado mas sim por uma organização internacional que estaria agindo sem interesses próprios, mas sim em nome da coletividade.
Esse manto de “organização internacional” desagua em diversas possibilidades e discussões na doutrina, mas que manteremos foco na questão jurisdicional penal, e até que ponto a cessão de jurisdição permite, no caso brasileiro, uma intervenção internacional por parte do Tribunal de Haia.
É importante ressaltar, que nos ditames do Estatuto de Roma, o mesmo informa que somente analisará casos, após o poder judiciários ou autoridades competentes Estado parte ter realizado todos os procedimentos para averiguação do fato tido como um de seus crimes. Contudo, o mesmo Estatuto, em seu artigo 17, prevê a possibilidade de intervenção direta no caso de morosidade processual com o intuito de não punir o possivel responsável pelo crime. Senão vejamos o que a referida disposição leciona:
Artigo 17. Questões Relativas à Admissibilidade
2. A fim de determinar se há ou não vontade de agir num determinado caso, o Tribunal, tendo em consideração as garantias de um processo eqüitativo reconhecidas pelo direito internacional, verificará a existência de uma ou mais das seguintes circunstâncias:
a) O processo ter sido instaurado ou estar pendente ou a decisão ter sido proferida no Estado com o propósito de subtrair a pessoa em causa à sua responsabilidade criminal por crimes da competência do Tribunal, nos termos do disposto no artigo 5o;
b) Ter havido demora injustificada no processamento, a qual, dadas as circunstâncias, se mostra incompatível com a intenção de fazer responder a pessoa em causa perante a justiça;
c) O processo não ter sido ou não estar sendo conduzido de maneira independente ou imparcial, e ter estado ou estar sendo conduzido de uma maneira que, dadas as circunstâncias, seja incompatível com a intenção de levar a pessoa em causa perante a justiça;
3. A fim de determinar se há incapacidade de agir num determinado caso, o Tribunal verificará se o Estado, por colapso total ou substancial da respectiva administração da justiça ou por indisponibilidade desta, não estará em condições de fazer comparecer o acusado, de reunir os meios de prova e depoimentos necessários ou não estará, por outros motivos, em condições de concluir o processo.
(grifos do autor)
Assim o que se pode trazer para discussão nesse momento é o fato de que o TPI nitidamente possuí uma garantia de intervenção jurisdicional na justiça penal local, prevendo quando, e em que possibilidades pode aderir ao caso e suplantar parcial ou totalmente a jurisdição e competência Estatal. Entende-se que é medida necessária o que se leciona no dispositivo acima transcrito e que de fato se mostra como equânime o ato de verificar a real situação do Estado para que se tome uma medida de intervenção na jurisdição.
Contudo, parte da doutrina discute essa questão de maneira mais cética e/ou realista, e em certo grau com doses de respaldo, quando desconfiam da atuação da Organização Internacional, que na teoria não era para ter interesses. Mas essa mesma doutrina lembra que uma Organização Internacional não é composta por pessoas sem pátria, e sim por Estados Membros que possuem os mais diversos interesses a depender do caso.
O professor William Schabbas (2001, p. 68), leciona sobre o tema, elevando a discussão sobre a questão de países mais desenvolvidos possuírem recursos diferentes dos menos desenvolvidos na condução do processo:
[…] Uma análise formal pode ser feita em detrimento da efetiva realização da justiça em um caso. Tal parâmetro favoreceria os países mais desenvolvidos em detrimento dos menos desenvolvidos, tendo em vista que as jurisdições dos países mais pobres contam com menos recursos para realização de perícias, produção de provas e proteção de testemunhas, sendo “incapazes de agir” nos termos do art. 17. Enquanto isso, os sistemas processuais mais sofisticados dos países desenvolvidos possuem padrões que poderiam afastar a admissibilidade de um caso pelo Tribunal Penal Internacional, mesmo que estes sistemas sejam utilizados para furtar alguém à efetiva punição pelo crime cometido […]
Ainda tomando como base o que leciona o dr. William Schabbas, trazendo para a luz da realidade jurisdicional do Brasil, podemos ver que, o que se propõe como realidade processual no Estatuto de Roma, sequer adequa-se ao judiciário brasileiro, famoso pela morosidade de seus processos. A efetividade, celeridade e presteza na solução de um caso que divide competência com o Tribunal Penal Internacional, pode colocar o sistema judicial do Brasil em cheque e todo o respaldo brasileiro no cenário internacional em evidente rota de coalizão com o que o próprio Estatuto denomina de Eficiência e Justiça.
O que se deve ter em mente ao analisar o Tribunal Penal Internacional, é que apesar de igualmente moroso, trata-se de uma instituição internacional sem interesse, mas quem em uma visão realista dos fatos é controlada por Estados que invariavelmente terão interesse, e que esse fator deveria ter sido levado em conta ao colocar o Brasil à disposição da jurisdição Internacional da Corte de Haia.
Uma profunda relativização constitucional deveria ter sido prevista, antes mesmo da assinatura de um documento, que sem uma análise aprofundada já afrontava princípios básicos da constituinte de 88 como prescrição, penas não humanitárias (do ponto de vista brasileiro) processos e procedimentos incompatíveis. Ressalta-se que o Brasil participou de todas as tratativas de criação do Estatuto de Roma, e que esse simples fato, lhe permitiria antever todos os conflitos jurisdicionais, uma vez que defendeu a aplicação de seus princípios na criação do texto do Estatuto, e aquilo que não tivesse sido deferido no corpo do documento, deveria ter sido discutido no âmbito interno para adaptação, relativização, exclusão ou mesmo tratado como exceção.
O Tribunal, atualmente, vigora na legislação interna com uma celeuma sanável, mas de estatura imensa, e que apesar de haver solução, a inercia legislativa poderá acarretar em prejuízos imprevisíveis numa situação prática, uma vez que apesar de existirem teorias que sustentam a total adaptabilidade do Estatuto de Roma, assim como está à legislação brasileira, o entendimento que se abordará aqui, é o de que não se trata de uma relativização constitucional, presumida, tão simples quanto o proposto por alguns juristas, mas que numa análise prática, além da incompatibilidade com princípios básicos do processo penal brasileiro o caso se estende para o contexto político de relações exteriores, suplantando as delimitações do direito e do judiciário.
IV – HIERARQUIA DAS NORMAS
Para traçar o grau de importância, a aplicabilidade e a subserviência de uma norma jurídica (ou não) para com outra, pode-se retroceder para as discussões de Kelsen e a evolução da Teoria da Hierarquia das Normas (KELSEN, 1998) que permeou parte da Europa, sobretudo no século XIX e sua influência na legislação brasileira atual. Contudo, com a finalidade de ser objetivo e o mais pragmático possível no que se propõe a discutir, analisar-se-á somente as regras vigentes na legislação brasileira e como essa se comporta perante os implementos advindos de documentos internacionais com carga normativa, para que seja possível, assim, adentrar no objeto de discussão que remete a jurisdição de um Tribunal/Legislação internacional Penal em conjunto (ou sobrepondo-se) à legislação brasileira.
Precipuamente é importante destacar que não existe uma legislação que defina, inequivocamente, as regras de hierarquia normativa de dispositivos da legislação brasileira, contudo, existe algum consenso sobre a supremacia da Constituição Federal baseados em teorias, regras gerais de direito e princípios como lex posterior derogat priori, lei especial e geral etc. Mas, apesar de alguns julgados definirem regras, ainda se discute, na doutrina, a questão dos tratados internacionais que não versam sobre Direitos Humanos.
Destaca-se aqui, o disposto no artigo 5°, §3° da CF/88 que nos informa que os Tratados Internacionais, que tenham por objeto os direitos humanos, aprovados por um quórum específico do Congresso Nacional terão status legal de emenda constitucional, portanto, estarão acima da legislação ordinária federal e comum. Senão vejamos:
CF/88, art. 5°, §3º – Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004).
Contudo, não goza da mesma clareza de grau hierárquico, previsto em legislação própria, os demais tratados internacionais que vigoram no direito brasileiro. O que existe é um consenso doutrinário advindo de jurisprudência do STF. Mais especificamente do RE 8004/77 que firma o entendimento de que os tratados em geral no Brasil se encontram em paridade normativa com a nossa legislação ordinária federal.
O problema da concorrência entre tratados internacionais e leis internas de estatura infraconstitucional pode ser resolvido no âmbito do direito das gentes. Pode-se observar que as questões de conflitos ou mesmo de dúvida sobre qual norma aplicar (internacional ou interna) em fatos que permitem múltiplas interpretações do direito, em outras legislações são resolvidas por normas internas próprias, que disciplinam a hierarquia de tratados internacionais de maneira geral. Por exemplo: dando prevalência aos tratados sobre o direito interno infraconstitucional, a exemplo das constituições francesa (art. 55), grega (art. 28, § 1º) e peruana (art. 101), garantindo ao compromisso internacional plena vigência, sem embargo de leis posteriores que o contradigam. Ou ainda tais problemas são resolvidos garantindo-se aos tratados apenas tratamento paritário, tomando como paradigma leis nacionais e outros diplomas de grau equivalente (REZEK, 1996).
O professor Bobbio (1999, p. 49), ainda afirma que:
há normas superiores e normas inferiores. As inferiores dependem das superiores. Subindo das normas inferiores àquelas que se encontram mais acima, chega-se a uma norma suprema, que não depende de nenhuma outra norma superior, e sobre a qual repousa a unidade do ordenamento. Essa norma suprema é a norma fundamental.
Assumindo, portanto, o posicionamento majoritário, que se coaduna com a jurisprudência da Corte Maior, entende-se que o Brasil transita entre o monismo nacionalista moderado e a teoria dualista moderada, como pode se verificar na ADI 1480 e na CR 8279, bem como é signatário da Convenção de Viena de 1969, a qual estipula a teoria monista como forma de tratamento para a legislação internacional nos documentos normativos internos.
Tendo em vista o que se dispôs a discutir acima, já é possível tecer algumas observações sobre a disposição do Tribunal Penal Internacional, previsto no art. 5°, §4° da CF/88:
§ 4º O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
Primeiramente observar que, apesar de tratar sobre a defesa de Direitos Humanos e se enquadrar perfeitamente ao que dispõe o §3° do art. 5° da Carta Magna, o Estatuto de Roma não foi aprovado com o quórum especial e, portanto, não tem status de emenda constitucional e sim de legislação ordinária. Contudo, está previsto como emenda constitucional no §4° do art. 5° (logo, cláusula pétrea) que “O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão”, podendo ser aferido que se trata de norma constitucional, acima da legislação comum, o tratamento da Jurisdição do TPI em território brasileiro.
Nota-se ainda que, apesar do Estatuto de Roma não ter o status de emenda constitucional, o fato de sua jurisdição o ter (art. 5°, §4°), permite que os casos de crimes previstos em seu Estatuto, cometidos em território brasileiro, possam ser previamente analisados por sua corte internacional, apesar de pairar, ainda, a dúvida sobre o poder executório das referidas medidas que acompanham o poder jurisdicional, bem como a interpretação que é dada aos referidos crimes e conceitos que em alguns momentos diferem do que se entende internamente.
Vale ressaltar que existe uma legislação processual penal interna, como visto no item I.I, que define regras de competência e jurisdição, e que em uma eventual hipótese de aplicação da jurisdição do Tribunal Penal Internacional, terá de ser ignorada ou relativizada, dependendo da interpretação que se dê sobre a hierarquia jurisdicional das cortes internas e do TPI.
V – A COMPETÊNCIA PENAL DOS TRIBUNAIS INTERNOS EM CRIMES PREVISTOS PELO TPI
Como já mencionado, o Tribunal Penal Internacional tem como objeto de atuação um rol taxativo de crimes que podem ser levados a sua apreciação, sendo eles: Crime de Genocídio, Crimes Contra a Humanidade, Crimes de Guerra e Crime de Agressão (BRASIL, 2002).
Artigo 5o
Crimes da Competência do Tribunal
1. A competência do Tribunal restringir-se-á aos crimes mais graves, que afetam a comunidade internacional no seu conjunto. Nos termos do presente Estatuto, o Tribunal terá competência para julgar os seguintes crimes:
a) O crime de genocídio;
b) Crimes contra a humanidade;
c) Crimes de guerra;
d) O crime de agressão.
2. O Tribunal poderá exercer a sua competência em relação ao crime de agressão desde que, nos termos dos artigos 121 e 123, seja aprovada uma disposição em que se defina o crime e se enunciem as condições em que o Tribunal terá competência relativamente a este crime. Tal disposição deve ser compatível com as disposições pertinentes da Carta das Nações Unidas.
De certo que o Código de Processo Penal (BRASIL, 1941) também tem definido quais regras de competência aplicar dependendo de diversos fatores, como pessoa, matéria, lugar, natureza do crime etc.; vejamos:
CPP, art. 69. Determinará a competência jurisdicional:
I – o lugar da infração:
II – o domicílio ou residência do réu;
III – a natureza da infração;
IV – a distribuição;
V – a conexão ou continência;
VI – a prevenção;
VII – a prerrogativa de função.
Logo é sabido que esse rol é somente indicativo para outras subclassificações que vão apontando qual a competência para avaliar determinada conduta, podendo ser relativizadas ou mesmo modificadas a depender de cada caso. Tomando como base o art. 69 do CPP pode-se apontar que primeiro se avalia as competências do lugar da infração e/ou do domicílio do autor para estabelecer o foro, logo após passa-se a verificar a natureza da infração para que se possa determinar a justiça competente para avaliar o caso. Determinado qual a justiça tem competência para julgamento, observa-se agora a quem compete receber: se o júri, se o juizado especial criminal, se a justiça criminal comum, da mulher etc. E por fim, ainda pode-se observar que, mesmo já definidos o foro e a justiça, há casos que a legislação apontará como competente mais de um juiz ou juízo, subsistindo aqui diversas outras regras que podem definir essa competência (andamento do processo, prática de atos relevantes, ordem de distribuição etc.). Não existe uma ordem natural para avaliação de competência penal no processo penal brasileiro, devendo cada caso ser avaliado individualmente e daí se extrair sua competência.
Assim, observa-se neste momento os crimes previstos pelo Estatuto de Roma, do qual o Brasil é signatário, quais seriam os entraves do aceite jurisdicional previsto no §4° do art. 5° da Constituição Federal e as possíveis relativizações e cessões jurisdicionais para evitar que o Brasil descumpra acordo firmado com órgão internacional.
V.I – Crime de Genocídio
Estatuto de Roma – Artigo 6o
Crime de Genocídio
Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por “genocídio”, qualquer um dos atos que a seguir se enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal:
a) Homicídio de membros do grupo;
b) Ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo;
c) Sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial;
d) Imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo;
e) Transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo.
Observa-se que o presente Estatuto cuidou de estabelecer não somente a noção geral de Genocídio que se disseminou através do tempo, que seria aquela de extermínio através da força de determinado grupo. O Estatuto de Roma cuida de abordar os mais diversos tipos de genocídio, ainda que não sejam impostos de forma violenta.
Na legislação doméstica o crime de Genocídio equiparável às ofensas diretas de Direitos Humanos cometidos em razão de raça, cor ou religião ganhou especial atenção, estando previsto tanto em nível constitucional e ordinário. No art. 4° da CF/88 indicando a prevalência dos Direitos Humanos em seu inciso II e o repúdio ao terrorismo e o racismo no inciso VIII. E no art. 5° inc. XLI e XLII, observando a imprescritibilidade desses crimes e sua inafiançabilidade.
Já na legislação interna, existe lei específica para o crime de genocídio, assinada ainda pelo presidente Juscelino Kubitschek em 1956:
LEI Nº 2.889, DE 1º DE OUTUBRO DE 1956.
Art. 1º Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:
a) matar membros do grupo;
b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;
c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;
d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo;
Com a evolução da Lei do Racismo, observou-se uma cobertura maior para atos de ofensas físicas/mentais de cunho racial, mencionando expressamente o Nazismo – que ficou conhecido principalmente por suas práticas genocidas:
LEI Nº 7.716, DE 5 DE JANEIRO DE 1989
Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Pena: reclusão de um a três anos e multa.
§ 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo.
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.
Nas lições do Professor Lyal Sunga (2000, p. 199), podemos aferir que o crime de genocídio, necessariamente precisa ter uma interpretação mais aberta, para que possa abraçar diversos atos que venham a caracterizá-lo:
Deve-se ter em mente que a definição legal de genocídio não deve ser comparada àquela de senso comum. O faro de a definição referir-se a qualquer um nas condições da definição empregada, não significa que alguém deva morrer para que o crime seja caracterizado. Essa interpretação também se aproxima dos propósitos da convenção do genocídio, que é a prevenção de sua ocorrência, e não apena punir os perpetradores depois que os crimes tenham sido praticados. Por outro lado, pode-se imaginar que os juízes do Tribunal Penal Internacional exercitarão com alta dose de cautela seus poderes para definir a ocorrência ou não do delito, dada a gravidade do crime que se trata.
Ademais, é importante ressaltar que existe um projeto de lei (PL 4038/2008) proposto ainda em 2008 que tenta estabelecer regras procedimentais para o crime de genocídio, prevendo competências próprias para sua avaliação em conjunto com o Tribunal Penal Internacional, mas até a presente data (19/05/2021) não há qualquer movimentação ou sinal de aprovação.
Tendo em vista o até aqui exposto, observa-se que, no Brasil, o Crime de Genocídio tutela a existência de um grupo racial, logo, havendo um nítido caráter coletivo transindividual. Tanto pela ótica internacional quanto pela interna, aponta-se que já é pacífico o entendimento de que o Genocídio pode ser cometido de diversas maneiras diferentes que não só o homicídio direto. Logo podemos concluir que, se excluído o cargo ou função que o autor eventualmente tenha, a competência, em regra, seria da Justiça Comum Penal. O STF no RE 351.487/RR observou que, havendo concurso entre o homicídio doloso e o crime de Genocídio, será competente o Tribunal do Júri da Justiça Federal.
De plano, observa-se a complexidade e a quantidade de variantes que podem ocorrer para se determinar a competência no caso do Crime de Genocídio. Ademais, o Tribunal Penal Internacional julga pessoas e não Estados, diferentemente dos demais Tribunais Internacionais, assim, supera-se aqui o instituto da entrega de nacional, que atualmente ainda rende muita discussão sobre sua semelhança com o instituto da extradição, e a regra constitucional de proibição de extradição de nacional. Assume-se que, independentemente do cargo ou função que o autor do crime tenha, o Brasil cumpriria com o instituto da entrega no caso de constatação de crime de genocídio.
Ainda existe a questão da competência de julgamento interno. Se o Tribunal Penal Internacional solicitasse a entrega de nacional que supostamente cometeu Crime de Genocídio, qual seria o procedimento a ser adotado?
Naturalmente, existem diversas variantes como: pode ser que o Brasil sequer tenha iniciado o processo penal contra o acusado, ou mesmo tenha concluído pela sua inocência. Mesmo assim deveria o Brasil entregar o nacional? A doutrina majoritária entende que sim, ao passo que simplesmente promove uma relativização generalizada de diversas regras processuais penais em detrimento do que dispõe o Estatuto de Roma. Dentre essas relativizações, aponta-se o que dispõe o Código Penal Brasileiro (BRASIL, 1940) sobre a competência para aplicação e execução da lei no caso de cometimento do crime de genocídio:
CP, art. 7º – Ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro:
I – os crimes:
[…]
d) de genocídio, quando o agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil;
Observa-se aqui que o art. 7° do CP é enfático em determinar qual lei deverá ser aplicada ao brasileiro que cometa crime de genocídio, ainda que no estrangeiro. Logo, nota-se que é uma lei de difícil execução tendo em vista que o cenário internacional atualmente rege-se pelo princípio da anarquia, mas que ainda assim é um dispositivo que está em vigor e no mesmo grau hierárquico do Estatuto de Roma.
O Estatuto estabelece em seu art. 59 as regras para detenção e entrega, enquanto o TPI julga o caso. Concomitantemente o Estado parte do TPI pode gerar um processo próprio de investigação que, como citado anteriormente, acarretando uma série de conflitos com o referido Estatuto, mas o que importa nesse momento é avaliar quais regras serão aplicadas para o julgamento desse indivíduo. Observa-se que a lei brasileira informa que deverão ser aplicadas as normas domésticas no caso de Crime de Genocídio que, nesse caso, não diferem muito do sistema processual do TPI previsto nos art. 60 a 69, mas que barram novamente quando se avalia a questão de aplicação das penas, que seria outro assunto tortuoso de se discutir nesse momento, já que o Brasil tradicionalmente não costuma extraditar pessoas que tenham como destino país que aplicará pena mais severa do que a que seria aplicada no Brasil. Mantem-se o foco portanto na questão procedimental em si.
No caso em tela, entende-se que entre a aplicação da lei penal brasileira e o disposto no TPI, a autoridade brasileira seria mais acertada em aplicar o que dispõe o documento internacional, ainda que em detrimento direto aos dispostos na legislação interna. Adota-se aqui a teoria da primazia do direito internacional, uma vez que se observar ainda o dificultoso, moroso e burocrático processo de entrada em vigor de um instrumento jurídico internacional, tendo como exemplo o próprio Estatuto de Roma que levou cerca de dois anos após sua assinatura, para entrar em vigor, de fato, na seara nacional.
Ademais, o Brasil adota como princípios norteadores a proteção dos Direitos Humanos enquanto direito natural e tem como base a cooperação internacional. Não seria de bom tom recusar-se a cumprir compromisso que assumiu internacionalmente, visto a relevância que tem, e o repúdio que expressa contra o genocídio. Para esse crime em específico é nítido que não há uma grande diferença de tratamento, uma vez que a legislação brasileira se inspira nos comportamentos internacionais quanto a evolução desse tipo, logo, os conflitos seriam mais procedimentais do que de direito material, devendo assim o Brasil ocupar-se em regulamentar, de imediato, os procedimentos para tratamento desse tipo penal, assim como propõe o PL 4038/2008, evitando assim que o Brasil descumpra ou seja sancionado por descumprimento do Estatuto de Roma. Lembrando que existe previsão expressa no Estatuto de Roma de que o Estado parte não poderá alegar cumprimento de legislação interna para eximir-se de cumprir os dispositivos do Estatuto.
V.II – Crimes Contra a Humanidade
Estatuto de Roma – Artigo 7o
Crimes contra a Humanidade
1. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por “crime contra a humanidade”, qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque:
a) Homicídio;
b) Extermínio;
c) Escravidão;
d) Deportação ou transferência forçada de uma população;
e) Prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional;
f) Tortura;
g) Agressão sexual, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável;
h) Perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, tal como definido no parágrafo 3o, ou em função de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional, relacionados com qualquer ato referido neste parágrafo ou com qualquer crime da competência do Tribunal;
i) Desaparecimento forçado de pessoas;
j) Crime de apartheid;
k) Outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental.
Observando de forma mais detida o referido tipo, é possível chegar à conclusão de que em sua origem foi um crime exclusivamente praticado por Estados, pois pressupõe uma ação dolosa, muitas vezes belicosa, contra diversas pessoas ou grupos. Atos esses comumente encontrados em situações de guerra ou conflitos armados causados por poderes ou grupos que desejam ascender ao status de representante daquele Estado ou região.
Com a evolução do Direito Internacional Público, em paridade com os Direitos Humanos, se entendeu por justo que nem sempre o Estado, enquanto entidade, deve ser imputado como único responsável, e que se foram condutas humanas que levaram ao cometimento do crime a pessoa física também deveria ser responsabilizada. O disposto no art. 7° do Estatuto de Roma prestigia em grau máximo esse raciocínio, prevendo condutas humanas que possam gerar danos graves ou permanentes à humanidade.
O Brasil, sobretudo após o advento da Constituição Federal de 1988, passou a envolver-se cada vez mais com essa temática, que já era desenvolvida com a redemocratização do país. Contudo, não existe um tipo próprio para o que se tem como “Crimes Contra a Humanidade”. O que se tem na legislação brasileira são diversos artigos espalhados tanto pela Carta Maior como pela legislação ordinária comum e federal.
Já em seu artigo 1°, III a Constituição Federal afirma que é princípio fundamental da república federativa do Brasil a “dignidade da pessoa humana”, e no seu artigo 4°, que disciplina os princípios das relações internacionais do Brasil, no inc. II pugna pela prevalência dos Direitos Humanos, inc. VI – defesa da paz, VII – solução pacífica dos conflitos, VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo. E assim segue nas demais legislações internas e documentos internacionais do qual o Brasil é signatário, na tentativa de respaldar os direitos fundamentais e naturais da humanidade como objeto de primeira ordem de proteção pela legislação interna.
O dr. Flávio Gomes (2009) leciona, sobre os crimes contra a humanidade, informando que:
são crimes contra a humanidade: o assassinato, o extermínio, a escravidão, a deportação e qualquer outro ato desumano contra a população civil, ou a perseguição por motivos religiosos, raciais ou políticos, quando esses atos ou perseguições ocorram em conexão com qualquer crime contra a paz ou em qualquer crime de guerra (cf. Parecer técnico firmado pelo Presidente do Centro Internacional para a Justiça de Transição, in Memória e verdade , coordenação de Inês Virgínia Prado Soares e Sandra Akemi Shimada Kishi, Belo Horizonte: Editora Fórum, 2009, p. 372).
Contudo, o tratamento do tipo “Crimes Contra a Humanidade” não ganhou especificidade na parte especial do Código Penal, apesar de interpretar-se que podemos enquadrá-lo nos diversos tipos do Título I a partir do art. 121. Mas assim como as demais legislações internas que versam sobre a proteção humana, mantem-se na base principiológica e interpretativa para se definir se a prática foi ou não atentado contra a humanidade.
O que se tem de relevante no âmbito doméstico sobre a tipificação e determinação procedimental sobre o tipo Crimes Contra a Humanidade é a já citada PL 4038/2008, que em seu Título III, art. 17 define o seguinte:
TÍTULO III
DOS CRIMES CONTRA A HUMANIDADE
Elementos comuns
Art. 17. São crimes contra a humanidade os praticados no contexto de ataque, generalizado ou sistemático, dirigido contra população civil, tipificados neste Título.
E segue informando quais condutas se enquadrariam nesse tipo, titularizado nos artigos 17 ao 36 o seguinte: Crime contra a humanidade por homicídio, Crime contra a humanidade por extermínio, Crime contra a humanidade por escravidão, Crime contra a humanidade por escravidão mediante tráfico, Crime contra a humanidade por deportação ou deslocamento forçado, Crime contra a humanidade por privação de liberdade, Crime contra a humanidade por tortura, Tortura qualificada, Crime contra a humanidade por tratamentos degradantes ou desumanos, Crime contra a humanidade por agressão sexual, Agressão sexual qualificada, Crime contra a humanidade por ato obsceno, Crime contra a humanidade por presença forçada em ato de agressão sexual ou obsceno, Crime contra a humanidade por escravidão sexual, Crime contra a humanidade por prostituição forçada, Crime contra a humanidade por gravidez forçada, Crime contra a humanidade por esterilização forçada, Crime contra a humanidade por privação de direito fundamental, Crime contra a humanidade por desaparecimento forçado, Desaparecimento forçado qualificado, Crime contra a humanidade por segregação racial – Apartheid, Crime contra a humanidade por lesão corporal, Lesão corporal qualificada, Associação para a prática de crime contra a humanidade.
Somente pelos tipos, sem adentrar em seus artigos, penas e/ou procedimentos, já se pode observar que vai além do que disciplina o próprio TPI, dando uma especificidade maior, abrangendo atos de discriminação e racismo. Contudo, devemos observar que esse PL, em específico, tem como base a complementariedade do Estatuto de Roma, e não uma atualização, propriamente dita, do Código Penal brasileiro. O que per si não deixa de ser um avanço para a legislação brasileira que, primeiro: não possui uma tipificação adequada para os crimes contra a humanidade, ficando dependente de documentos e legislações internacionais, gerando assim uma instabilidade jurídica interna e um desprestígio externo dependendo da decisão que se tome; e segundo: o Estatuto de Roma, atualmente, está totalmente adstrito ao princípio da complementariedade, ou seja, está em absoluto à disposição de uma decisão política/judicial para sua aplicação ou não, apesar de já fazer parte da legislação interna e o Brasil ter se comprometido internacionalmente. Logo, a implementação/discussão desse PL é mais do que urgente para que se regularize a situação não só desse tipo de Crimes Contra a Humanidade, mas todo o Estatuto de Roma junto à legislação brasileira.
V.III – Crimes de Guerra
Estatuto de Roma – Artigo 8o
Crimes de Guerra
1. O Tribunal terá competência para julgar os crimes de guerra, em particular quando cometidos como parte integrante de um plano ou de uma política ou como parte de uma prática em larga escala desse tipo de crimes.
O Crime de Guerra é previsto no Estatuto de Roma, e distribuído em cerca de 60 parágrafos, incisos e alíneas do art. 8°, onde disciplina as situações que poder-se-á considerar que o crime de guerra foi cometido.
Logo, entre os internacionalistas penais, esse é um dos mais subjetivos tipos penais que é posto em debate, uma vez que os atos de agressão e a aleatoriedade com que podem ser praticados supera a capacidade normativa de qualquer Estado, ou mesmo da ONU, que é o órgão que mais disciplina o tema.
Em regra, todo Estado soberano, com forças armadas constituídas, possui um regulamento interno para o uso da força em caso de agressão ou necessidade de defesa preventiva. Regramentos esses que não se confundem com o Crime de Guerra aqui em discussão, já que esse cuida em tratar de atos deploráveis praticados em meio a um conflito aberto e conhecido (interna e/ou externamente), na tentativa de minimizar danos colaterais ou a utilização de arma ou apetrechos que possam causar dano direto ou indireto a terceiros ou inocentes civis.
O Brasil é signatário de quase todas as convenções, apesar de não ter tradição belicosa, que tratam direta ou indiretamente sobre a proteção dos Direitos Humanos bem como o repúdio a atos de agressão, e diplomaticamente tem o histórico de sempre pugnar pelas vias diplomáticas no intuito de evitar qualquer conflito; estando presente na criação de centenas de tratados desse tipo, é um dos membros fundadores da Liga das Nações e da ONU, assim como do próprio TPI que se discute nesse artigo. Por não possuir na legislação doméstica a tipificação direta dos crimes de guerra, o Brasil utiliza seus documentos internacionais, do qual é signatário, como parâmetro para aplicação jurisdicional.
A discussão jurisdicional sobre o referido crime se torna ainda mais complexa no contexto brasileiro, vez que não possui legislação própria para ele e, se analisarmos o quadro geral em que o referido crime pode acontecer, é difícil imaginar na prática como o Brasil cumpriria o que dispõe o Estatuto de Roma sem que tenha uma parte fundamental de sua soberania agredida por uma legislação estranha, que sequer foi devidamente discutida internamente por especialistas, mas tem força de lei, em decorrência de ato político.
Parte da doutrina entende que a soberania pode ser relativizada em algumas situações de benefício coletivo, como é o caso do princípio da complementariedade de jurisdição, que sem emprega ao TPI. Analisando a origem do princípio da soberania o professor João Miranda (2011, p. 15 e 16) destaca que:
O princípio da Soberania é tido como atributo essencial do Estado nacional. Embora sua origem remonte ao final da idade média, foi com o tratado de Westfalia, em 1648, que este princípio adquiriu ampla aceitação, sendo considerado um dos fundamentos da ordem internacional. O atributo da soberania engloba uma série de prerrogativas que se fazem exclusivas para aqueles que as detém, como o exercício da jurisdição ou o poder de ditar leis validas, para o território do Estado, razão pela qual a soberania é tida como fundamento da ordem judicial estatal.
Imagine-se a situação em que o Brasil tem a premente necessidade de utilização da força contra outro Estado (ainda que nos casos previstos pela ONU – mas sem autorização dessa) e por fim seu ato acabe se enquadrando em uma das hipóteses previstas pelo Estatuto de Roma. Nesse contexto a hipótese ideal era que já houvesse uma legislação disciplinando como o Brasil deveria agir e dando plena legalidade para aplicação da jurisdição externa, de forma autorizativa (e não presumida – como se tem hoje) em que nessa situação em específico renuncia-se a jurisdição interna em favor do TPI – e daí o caso seguiria normalmente, e o Brasil estaria seguro juridicamente no contexto interno e externo.
Contudo, a realidade é outra, e o único Projeto de Lei que se tem sobre o assunto não é suficiente e está a mais de 12 anos parado no Congresso para ser discutido.
Em tese, se o Brasil ou seu representante se enquadrasse no tipo penal em comento, se instalaria o verdadeiro caos interno, visto que as autoridades brasileiras, por óbvio, atrairiam a competência jurisdicional para si, afinal, existe legislação suficiente para prosseguir com um processo investigativo e judicial contra o possível autor de um crime de guerra. há legislações que definem competência, a depender do cargo ocupado na administração pública, assim como um Tribunal Militar que cuida especificamente de possíveis autores desse tipo penal. Então o que se daria na situação de o TPI invocar o Estatuto de Roma solicitando a entrega do nacional acusado de ser responsável pelo cometimento do crime de guerra? Indo mais além: e se os tribunais internos decidirem pela inocência do acusado e o TPI entender pela culpabilidade?
É possível tecer infinitas possibilidades sobre os desdobramentos desastrosos que poderiam ocorrer no caso de não haver uma lei que discipline corretamente esse tipo penal ou a relação com o TPI, mas o fato é que fica evidente que o Brasil não está preparado para uma situação como essa, e que em um caso análogo as autoridades se verão somente com duas opções: 1) ceder totalmente sua jurisdição cumprindo o que pede o TPI, aplicando suas regras processuais e persecutórias (ainda que o acusado permaneça no Brasil enquanto a investigação acontece no Tribunal Penal Internacional em Haia, mas, de qualquer forma, sob as regras e às orientações das autoridades internacionais) cumprindo assim, integralmente, o que se comprometeu ao assinar o Estatuto de Roma e colocar sua jurisdição na Carta Magna, ainda que isso viole diretamente outras leis internas em igualdade hierárquica; ou 2) ignorar os pedidos de entrega do nacional, cometendo assim violação direta ao Estatuto de Roma e as disposições da carta da ONU e outros tratados internacionais que disciplinam sobre violações de documentos internacionais, mas, nesse caso, mantendo a integridade jurisdicional das autoridades brasileiras e das próprias leis.
Vale ressaltar ainda que, são somente conjecturas de possíveis resultados, e existem na literatura internacionalista os mais diversos posicionamentos que tentam justificar a validade integral do Estatuto de Roma no ordenamento jurídico brasileiro e que seu cumprimento não acarretaria qualquer violação à soberania, jurisdição ou legislação brasileira, já que o próprio Estatuto prevê diversas saídas para esses eventuais conflitos. Mas não se pode deixar de observar que essas discussões ficam somente no plano da teoria, e que ainda não houve uma situação fática para análise. Indo além, as discussões somente no plano do direito são incapazes de prever ou resolver qualquer um desses entraves, já que uma vez adentrado numa situação de Crime de Guerra, conclui-se que o contexto político interno e externo, terá muito mais relevância no decorrer do caso, mas havendo uma legislação especifica que discipline a possível situação de crime de guerra e jurisdição clara para o julgamento dos responsáveis, o Brasil estaria nitidamente mais confortável no cumprimento de suas obrigações.
V.IV – Crime de Agressão
Pela subjetividade que comporta o Crime de Agressão, o TPI, em sua primeira versão da Carta de Roma, preferiu deixar em aberto, estabelecendo apenas o procedimento conforme os artigos 121 e 123 do Estatuto de Roma e definido como orientação para o Crime de Agressão o que dispõe a Resolução 3314 (XXIX) da Assembleia Geral das Nações Unidas, informando que:
(a) invasão ou ataque do território de um Estado pelas forças armadas de outro Estado, ou qualquer ocupação militar, mesmo temporária que resulte dessa invasão ou ataque, ou toda anexação, por meio do uso da força, do território de outro Estado ou de parte dele;
(b) bombardeio do território de um Estado pelas forças armadas de outro Estado ou o uso de quaisquer armas por um Estado contra o território de outro Estado;
(c) bloqueio de portos ou do litoral de um Estado pelas forças armadas de outro Estado;
(d) ataque pelas forças armadas de um Estado às forças armadas terrestres, navais ou aéreas de outro Estado, à sua frota mercante ou aérea;
(e) utilização de forças armadas de um Estado, que se encontrem no território de outro Estado com o consentimento do estado receptor, em violação às condições do consentimento ou como extensão de sua presença no referido território depois de retirado o consentimento;
(f) ação de um Estado que permite que seu território, quando posto à disposição de outro Estado, seja utilizado por esse outro Estado para praticar um ato de agressão contra um terceiro Estado;
(g) envio, por um Estado ou em seu nome, de grupos armados, de grupos irregulares ou de mercenários que pratiquem atos de força armada contra outro Estado, de tal gravidade que sejam equiparáveis aos atos antes enumerados, ou sua substancial participação na prática de tais atos.
Nota-se que, através da Resolução RC/RES.6 foi emendado e, por isso, segundo os critérios processuais legislativos brasileiro, é necessária nova aprovação pelo Congresso Nacional para que as emendas do Estatuto passem a ter validade em território nacional. Apesar do Brasil ter sido parte nas tratativas que definiram o Crime de Agressão no Estatuto de Roma, não irá se discutir a problemática nesse trabalho, para focar no que até o momento tem validade segundo o DECRETO Nº 4.388, DE 25 DE SETEMBRO DE 2002, que insere o Estatuto de Roma na legislação brasileira. Mas, apesar disso, já podemos observar que, assim como o Crime de Guerra, já existe uma evidente disparidade entre o que, de fato, o Brasil se comprometeu ao assinar o Estatuto de Roma e suas emendas, e o que está em vigência no território nacional.
A título de observação, prestigiando o que há de atual e válido na legislação internacional, colaciona-se parte da referida resolução que define o crime em comento:
Taking note of resolution ICC-ASP/8/Res.6, by which the Assembly of States Parties forwarded proposals on a provision on the crime of aggression to the Review
Conference for its consideration, Resolved to activate the Court’s jurisdiction over the crime of aggression as early as possible.
[…]
Article 8 bis
Crime of aggression
1. For the purpose of this Statute, “crime of aggression” means the planning, preparation, initiation or execution, by a person in a position effectively to exercise control over or to direct the political or military action of a State, of an act of aggression which, by its character, gravity and scale, constitutes a manifest violation of the Charter of the United Nations.
2. For the purpose of paragraph 1, “act of aggression” means the use of armed force by a State against the sovereignty, territorial integrity or political independence of another State, or in any other manner inconsistent with the Charter of the United Nations. Any of the following acts, regardless of a declaration of war, shall, in accordance with United Nations General Assembly resolution 3314 (XXIX) of 14 December 1974, qualify as an act of aggression:
As alíneas que seguem o parágrafo segundo são as mesmas retromencionadas da Resolução 3314 (XXIX) da Assembleia Geral das Nações Unidas.
Existe diversas posições de internacionalistas sob como o referido crime deveria ser tratado na legislação interna de cada país parte do Estatuto de Roma, visto que o Estatuto possui regras de jurisdição complementar, assim como já mencionadas, tem disposição própria afirmando que o Estado parte, não poderá alegar cumprimento de legislação interna para descumprir o que dispõe o Estatuto de Roma.
Seria uma saída de argumentação simplista, e fácil demais de se alegar, mas extremamente difícil de se concretizar no plano fático. Propõe-se aqui uma análise mais complexa do problema que se apresenta: 1 – o Brasil se compromete internacionalmente ao cumprimento de uma legislação penal internacional; 2 – o Brasil possui regras próprias de jurisdição e competência; 3 – o Brasil insere no seu rol de cláusulas pétreas que se submete à jurisdição do TPI, ainda que o estatuto que dispõe sobre o TPI tenha status supralegal; 4 – o Brasil não possui tipificação clara na legislação interna, tendo de se utilizar de documentos internacionais para alguns crimes do gênero, e neste momento se indaga: Pode-se utilizar exclusivamente a legislação internacional para condenações internas e o Estado Brasileiro negar-se ao cumprimento da jurisdição internacional sobre pretexto de cumprimento da lei maior (CF/88)?
Observa-se ainda que o próprio decreto 4388, que estabelece o Estatuto de Roma, em seu art. 2° informa que:
Art. 2o São sujeitos à aprovação do Congresso Nacional quaisquer atos que possam resultar em revisão do referido Acordo, assim como quaisquer ajustes complementares que, nos termos do art. 49, inciso I, da Constituição, acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional.
Então, sequer as emendas que definem o Crime de Agressão possuem efetiva validade na legislação doméstica; o que fazer na hipótese de o TPI julgar nacional brasileiro, utilizando a referida resolução que define o Crime de Agressão? Chaga-se neste momento em um entrave jurídico idêntico ao que se comentou no Crime de Guerra. De uma forma ou de outra, violar-se-ia ou a legislação interna (seja em nível constitucional ou infraconstitucional) ou a legislação internacional.
Com relação, especificamente, a este crime, um possível desentrave seria a mesma descrita no tópico que trata sobre o Crime de Guerra: a necessidade urgente de uma nova legislação que regule a jurisdição penal do Tribunal Penal Internacional em território brasileiro, definindo processos e procedimentos, alterando ou emendando leis vigentes para se adequar ao documento internacional.
Além disso, é necessário que se aprove no Congresso a referida resolução que emenda o Estatuto. Observa-se que o Brasil foi Estado parte na discussão sobre a referida emenda, inclusive propondo diversas das disposições que estão presentes na resolução, não existindo qualquer motivo lógico para o descumprimento, mas aqui salienta-se que o direito não observa a lógica dos fatos e sim o que está positivado, restando assim uma rusga sanável na legislação interna.
VI – O CONFLITO DE JURISDIÇÃO NO QUE TANGE AOS CRIMES PREVISTOS NO ESTATUTO DE ROMA
Ao que tudo indica, tendo em vista a análise acima traçada nos pontos anteriores, parece que existe a boa vontade do Brasil no cumprimento do compromisso internacional, com o que há de mais avançado no que tange aos Direitos Humanos e a um Direito das Gentes unificado e amplo. Mas do ponto de vista interno, se olhar atentamente a forma como foi inserido o Estatuto de Roma na legislação doméstica e sua completa falta de discussão (o único projeto de lei que trata do assunto está fazendo aniversário de 12 anos engavetado nos arquivos do Congresso), mostra que em um caso prático o Brasil se coloca em uma situação extremamente delicada.
Como visto, os crimes a que se dedica o Estatuto de Roma em sua maioria só existem na legislação interna, em decorrência de compromissos internacionais, e a evolução dos Direitos Humanos promovidos por estes na legislação interna. Não existe uma codificação procedimental e processual para eles no caso de haver uma expressa ordem de entrega advinda do Tribunal Penal Internacional.
Os defensores mais fervorosos do Direito Penal Internacional, principalmente aqueles que simpatizam com as teorias monistas, entendem que a jurisdição internacional estaria acima da jurisdição interna, e que em regra não haveria o conflito de jurisdição, visto que o Brasil se comprometeu internacionalmente com o tema e cumpriu as exigências formais ao inserir o documento em sua legislação interna, assim não havendo qualquer motivo para descumprimento ou mesmo margem para discussão sobre possível conflito de jurisdição, já que na própria Carta Magna de 88 é expressamente informado que o “Brasil se submete à jurisdição do Tribunal Penal Internacional”.
Por outro lado, os mais críticos e os adeptos do dualismo penal internacional entendem que são legislações distintas e em níveis iguais em determinadas situações, dependendo assim de cada caso para determinar a jurisdição competente para julgar o processo Mesmo entre os que concordam com a teoria dualista do Direito Internacional, há os que advogam pela supremacia da jurisdição penal internacional em detrimento da jurisdição brasileira quando se tratar dos crimes dispostos no Estatuto de Roma, revelando assim que, apesar de existir uma coletividade maior dos que entendem que a Jurisdição do TPI se sobressai quando se trata daqueles crimes já mencionados, existem ainda aqueles que se preocupam com a real possibilidade de cumprimento do que dispõe o Estatuto de Roma, vide a proposta de projeto de lei que tenta regulamentar a situação no caso de um eventual pedido.
É importante salientar neste momento que o Brasil, por ter histórico firmado na diplomacia, pacificidade e boas relações internacionais com a maior parte dos demais países do mundo não se mostra isento de ter sua jurisdição relativizada e aplicado o que dispõe o TPI, principalmente se levar-se em consideração a postura internacional que o país vem tomando nos últimos anos. Observa-se ainda que em 2019 houve denúncia formal contra o Presidente da República (Jair Messias Bolsonaro) por genocídio de povos indígenas, em que a referida denúncia já foi recebida pelo escritório da procuradoria do Tribunal Penal Internacional, o qual enviou comunicado informando que o caso estava formalmente sob “avaliação preliminar de jurisdição”. Em julho de 2020 foi enviada nova denúncia, também por genocídio, pela forma como tratou a pandemia de COVID-19 (este foi arquivado por falta de evidências que demonstrassem sua efetiva participação em eventual crime). Neste último caso, podemos observar que não foi uma exclusividade brasileira levar o chefe do executivo ao Tribunal de Haia, tendo muitos outros Estados acionado o TPI, principalmente com relação ao manejo da pandemia por suas autoridades.
É importante observar que o simples aceite de análise do TPI em fazer verificação do caso contra o presidente, já representa um imensurável desgaste para imagem internacional do Brasil que, até então, sempre foi inquestionavelmente bem-quisto e respeitado, principalmente em discussões que envolvam Direitos Humanos e seu desenvolvimento na seara internacional. Assim sendo, ma eventual disputa ou discussão com a Corte de Haia sobre procedimento e competência de jurisdição em um eventual, e provável pedido de entrega ou condenação (no caso por crimes relacionados a genocídio de grupos) pode colocar o Brasil em situação ainda mais indesejável.
Repete-se a falta de legislação sobre o tema, mas existe jurisprudência da suprema corte que se debruça sobre a validade da cooperação jurisdicional, no caso de requisição de entrega de chefe do executivo, em decisão prolatada pelo ministro Celso de Mello (Pet.4625), em que se levantou questionamentos como a incorporação da convenção multilateral ao ordenamento jurídico brasileiro, eventual pedido de detenção de chefe de Estado estrangeiro e de sua ulterior entrega ao Tribunal Penal Internacional, a distinção dos institutos da entrega e da extradição e outras incompatibilidades, senão vejamos:
Estatuto de Roma – Tribunal Penal Internacional – Prisão de Chefe de Estado Estrangeiro (Transcrições)
Pet 4625/República do Sudão*
EMENTA: ESTATUTO DE ROMA. INCORPORAÇÃO DESSA CONVENÇÃO MULTILATERAL AO ORDENAMENTO JURÍDICO INTERNO BRASILEIRO (DECRETO Nº 4.388/2002). INSTITUIÇÃO DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL. CARÁTER SUPRA-ESTATAL DESSE ORGANISMO JUDICIÁRIO. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA COMPLEMENTARIDADE (OU DA SUBSIDIARIEDADE) SOBRE O EXERCÍCIO, PELO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, DE SUA JURISDIÇÃO. COOPERAÇÃO INTERNACIONAL E AUXÍLIO JUDICIÁRIO: OBRIGAÇÃO GERAL QUE SE IMPÕE AOS ESTADOS PARTES DO ESTATUTO DE ROMA (ARTIGO 86). PEDIDO DE DETENÇÃO DE CHEFE DE ESTADO ESTRANGEIRO E DE SUA ULTERIOR ENTREGA AO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, PARA SER JULGADO PELA SUPOSTA PRÁTICA DE CRIMES CONTRA A HUMANIDADE E DE GUERRA. SOLICITAÇÃO FORMALMENTE DIRIGIDA, PELO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, AO GOVERNO BRASILEIRO. DISTINÇÃO ENTRE OS INSTITUTOS DA ENTREGA (“SURRENDER”) E DA EXTRADIÇÃO. QUESTÃO PREJUDICIAL PERTINENTE AO RECONHECIMENTO, OU NÃO, DA COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PARA EXAMINAR ESTE PEDIDO DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL. CONTROVÉRSIAS JURÍDICAS EM TORNO DA COMPATIBILIDADE DE DETERMINADAS CLÁUSULAS DO ESTATUTO DE ROMA EM FACE DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. O § 4º DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO, INTRODUZIDO PELA EC Nº 45/2004: CLÁUSULA CONSTITUCIONAL ABERTA DESTINADA A LEGITIMAR, INTEGRALMENTE, O ESTATUTO DE ROMA? A EXPERIÊNCIA DO DIREITO COMPARADO NA BUSCA DA SUPERAÇÃO DOS CONFLITOS ENTRE O ESTATUTO DE ROMA E AS CONSTITUIÇÕES NACIONAIS. A QUESTÃO DA IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO DO CHEFE DE ESTADO EM FACE DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL: IRRELEVÂNCIA DA QUALIDADE OFICIAL, SEGUNDO O ESTATUTO DE ROMA (ARTIGO 27). MAGISTÉRIO DA DOUTRINA. ALTA RELEVÂNCIA JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DE DIVERSAS QUESTÕES SUSCITADAS PELA APLICAÇÃO DOMÉSTICA DO ESTATUTO DE ROMA. NECESSIDADE DE PRÉVIA AUDIÊNCIA DA DOUTA PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA.
Ministro CELSO DE MELLO
Presidente, em exercício
(RISTF, art. 37, I)
A fim de não se tornar exaustivo ao analisar toda a decisão do ministro, nota-se nela que o então presidente da Corte Maior, foi além de simplesmente proferir ou não despacho concedendo a extradição/entrega de chefe de Estado. Mas levantou diversos outros apontamentos c mostrando a necessidade de se discuti-lo com urgência, demonstrando assim, que diferente do que sustenta parte da doutrina, a jurisprudência per si, não consegue, nem pode, substituir uma adequada legislação sobre o tema.
A premente necessidade que existe em sanar-se, ou mesmo apresentar uma claridade maior no que se refere ao possível conflito de jurisdição entre a Corte Internacional e a jurisdição brasileira para julgar seus nacionais se revela ainda mais urgente visto que nosso país possui caso em análise pela procuradoria do Tribunal e diversos outros pedidos que partem de diversas partes do país por crimes de competência do TPI.
Não se trata somente de utilizar princípios ou presumir intenções da Constituição em matéria de cooperação internacional para aplicabilidade do Estatuto de Roma. Não existir qualquer legislação interna que “bata o martelo” afirmando o que se deve relativizar, o que deve adaptar-se e o que se deve excluir da normativa doméstica, só colocará o Brasil em uma situação cada vez mais fragilizada, tornando, possivelmente, inaplicáveis os institutos do Estatuto de Roma ao qual se comprometeu. Prova disso é o caso do referido processo, retromencionado (pet. 4625/República do Sudão), em que um caso tão emblemático foi fadado à gaveta, em que requisitou-se ao Brasil a entrega/extradição do presidente Omar Al Bashir, tendo como relator o então Ministro Celso de Mello, onde informou que a questão do instituto da entrega ainda deveria ser discutida pelas instituições brasileiras, declarando assim a inviabilidade do pedido (pelo fato de Al Bashir não estar mais em território nacional). Como nada foi feio, em decorrência da complexidade de adaptação do Estatuto de Roma (não só por parte do Brasil) Al Bashir em 13/04/2015 se reelegeu presidente com 94,5% dos votos, ficando na cadeira presidencial até 2019 (30 anos). Omar Al Bashir foi deposto em 2019, um novo regime governamental foi instaurado na República do Sudão, em 2020 o governo se comprometeu em entregar o ex-presidente, acusado de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Atualmente (29/06/2021) o Sudão ainda está em negociação para que os julgamentos ocorram em seu território (DW, 2021) – O processo contra Omar Al Bashir iniciou-se em 2009.
Em verdade, é necessário uma imensa mobilização política e intelectual por parte da doutrina, para que se veja algum resultado formal, não somente positivado (e ainda não o é) mas enraizado na cultura judicial e legislativa, de forma a não haver dúvida sobre qual jurisdição deverá ser aplicada no caso dos crimes apresentados pelo TPI. E mais do que nunca, é preciso parar de romantizar o Direito Internacional como se de fato esse tipo de legislação estivesse indubitavelmente acima de tudo que é lei em território nacional e que apesar do Brasil ser um evidente cumpridor de seus compromissos internacionais, também havendo histórico de não cumprimento de documentos internacionais por simples vontade política (vide caso Cesare Battisti).
VII – A PLAUSIBILIDADE DE CUMPRIMENTO DO QUE DISPÕE O ESTATUTO DE ROMA E OS POSSÍVEIS PREJUÍZOS PARA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA
Apesar de todos os conflitos de normas aparentes ou não, o Brasil ainda possui em sua doutrina e legislação, formas de avaliação a aplicação de legislações conflitantes. Como é o caso de lei especial e geral, antiguidade, hierarquia etc., como já se discutiu em tópico anterior.
Ainda é importante notar que, havendo boa vontade política e jurisdicional, é possível sim aplicar em sua integridade o que dispõe o Estatuto de Roma no que tange a cessão jurisdicional, colocando de lado, ou mesmo relativizando a jurisdição interna, sem que haja uma patente inconstitucionalidade ou ainda uma violação direta de disposição legal doméstica.
Seria o caso de adotar uma percepção da superioridade e importância que tem o direito internacional, para o desenvolvimento jurídico interno e externo, dando relevância assim para todo o prestígio que o Brasil ganhou na seara internacional penal no que tange, principalmente, a defesa dos Direitos Humanos. Seria o caso de se chegar a um consenso de que, na falta da referida legislação, que tanto debateu-se nos tópicos precedentes, tornar crível uma relativização em cumprimento de compromisso internacional, que de fato é mais benéfico para o Brasil e toda a comunidade da qual ele faz parte, abrindo-se mão assim, por “um bem maior”.
Em uma autoanálise da legislação interna, o conflito de leis é mais do que comum, e a liberdade de aplicação delas é ainda mais amplo quando observa-se a prerrogativa do livre convencimento motivado que os magistrados brasileiros possuem. A legislação brasileira é relativizada diariamente em prestigio da especificidade do caso, sendo a delação premiada o exemplo máximo disso, em que: mesmo havendo a confissão de um crime, o autor acaba não tendo a pena aplicada, ou reduzida, em benefício da coletividade, levando em conta que a informação que ele possuí é de relevância maior e mais ampla do que seu caso isolado, possuindo assim um processo próprio, de exceção, que foi se desenvolvendo e adequando-se a legislação brasileira aos poucos, tendo como base os casos que iam surgindo (vide Lava Jato). Contudo, não se pode dar ao luxo de esperar o mesmo da Corte de Haia; e que haja um caso concreto para que só então se passe a legislar. E se for o caso, ter incutido na cultura jurídico-brasileira que é necessário prestigiar o Direito Internacional Penal, sob pena de prejuízos imprevisíveis dificilmente reversíveis e extremamente danosos para a imagem nacional.
VIII – CONCLUSÕES
É latente o alto grau de atraso que se encontra o Brasil no que tange as disposições jurisdicionais do Estatuto de Roma. Fator esse que é agravado pela falta de legislação interna que evitaria o completo caos jurisdicional no caso de uma requisição formal do Tribunal Penal Internacional.
O Brasil, por si só, se mostra extremamente avançado do que se refere à legislação penal internacional e Direitos Humanos, sendo signatário de todos os importantes tratados que versam sobre o assunto, e tendo participado da elaboração de tantos outros. A relevância que deu ao TPI, colocando-o em sua Carta Magna e inserindo a prerrogativa jurisdicional entre as cláusulas pétreas, torna irrefutável o compromisso que o Brasil demonstra com os compromissos internacionais de defesa dos Direitos Humanos.
Porém, a imediata necessidade de se legislar sobre o procedimento interno de adequação do Tribunal Penal Internacional para obedecer a jurisdição penal interna, demonstra uma fragilidade, no que se refere a adaptabilidade constitucional (e infraconstitucional) às disposições do Estatuto de Roma. A imprevisibilidade de como o país reagirá no caso de uma eventual condenação de nacional em julgamento no TPI só demonstra o quão despreparado o sistema de justiça brasileiro está, e que na realidade os compromissos se mantêm no mundo das ideias. Fato é que, sequer existe legislação própria para adequação do direito internacional, sendo a principal fonte jurisprudências do STF que afirmam o grau de hierarquia das normas internacionais.
Um projeto de lei, engavetado a mais de 12 anos, demonstra que alguns poucos se preocuparam com a questão procedimental da cessão de jurisdição. Projeto de Lei esse que não seria o suficiente, mas já seria um primeiro passo para discussões mais amplas de quão benéfico ou não é essa relativização da jurisdição brasileira em favor da Corte de Haia. Já não se trata de uma questão de possibilidade de se legislar sobre o assunto, e sim de necessidade. Observa-se que o chefe de Estado brasileiro teve sua denúncia aceita para análise pela procuradoria do TPI que, na maioria dos casos, rejeita sumariamente em decorrência de suspeita de facilitação de extermínio de povos indígenas. É um processo que já está em movimento, que pode ser arquivado ou não, e seria o caso de o Brasil estar preparado para a situação de uma requisição ou colaboração.
Aparentemente, tendo em vista como age atualmente a corte maior e o judiciário como um todo, será necessário primeiro a requisição do TPI, e assim começarão as diversas ações adentradas diretamente no STF para discutir procedimentos e validade de pedidos, em processos que dependeram dos prazos nacionais e que quase certamente não coadunarão com os prazos do processo internacional.
Logo, conclui-se que a única forma para se solucionar ou evitar o conflito entre a jurisdição internacional e a jurisdição interna vai além da simplória interpretação de que “pelo fato de estar contido no art. 5º da constituição” a cessão de jurisdição é “martelo batido” e de fácil entendimento da obrigação brasileira, quando na verdade é necessária uma discussão muito mais profunda e sistêmica de como o Brasil deve se comportar em casos de conflito com a jurisdição penal internacional, e ter claro em sua legislação procedimentos que evitem interpretações teratológicas que invoquem princípios internos em detrimento dos externos, ou mesmo decisões políticas que possam influir no sistema jurídico já consolidado (ou a se consolidar). Assim sendo, é preciso uma legislação específica, completa e de discussão aprofundada do tema, que livre de dubiedade como a jurisdição penal internacional se comporta no Brasil.
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